sábado, 6 de março de 2010

UMA LEVÍSSIMA CONSIDERAÇÃO SOBRE A LIBERDADE DO PENSAMENTO ACADÊMICO

Lembro-me quando preparava meu projeto de dissertação de mestrado. Minha orientadora, meus colegas e meus professores colocavam em dúvida os fundamentos de minha pesquisa: o corpus documental, a metodologia e a abordagem teórica que eu propunha desenvolver para dar conta de meu objeto de pesquisa.
O volume de documentos por mim levantado era realmente impressionante, se considerados os limites de uma dissertação. O maior volume de documentos escritos pertencia a Coleção Carlos Sampaio  prefeito do Rio de Janeiro de 1919 a 1922  tesouro esquecido que descobri casualmente quando fazia uma pesquisa no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no bairro da Glória. Tratava-se de toda a sua correspondência pessoal, trazendo informações complementares àquelas tecnicamente relatadas em documentos oficiais.
A segunda parte do corpus era iconográfica: plantas e mapas históricos da cidade do Rio, contando a história da sua evolução espacial; e fotografias, muitas fotografias, sobretudo do Álbum de fotografias do Morro do Castelo, então foco principal de minha pesquisa, de autoria do fotógrafo oficial da Prefeitura, Augusto Malta. Um dado interessante sobre este álbum é o acesso a ele: recolhido à seção de iconografia da Biblioteca Nacional, vivia trancado num cofre, inacessível ao leitor comum, e sua manipulação resultava num enredo kafkeano.
O terceiro subconjunto da documentação era literatura, especialmente as crônicas de João do Rio. Figura ímpar no cenário intelectual carioca, colocava em prática aqui nos trópicos, uns cinquenta anos depois de Boudelaire, o estilo dândi de viver a vida. Jornalista e proto-antropólogo urbano, buscou conhecer com profundidade a alma do Rio de Janeiro de sua época, narrando, não sem ironia, as suas aventuras nas ruas do centro, nos arrabaldes e subúrbios da cidade. Ao lado de João do Rio, buscava na obra do mestre Machado de Assis, inquestionável carioca, suas descrições de personagens e lugares, assim como inspiração de estilo para escrever.
Por consequência, a metodologia para analisar tal universo documental só podia ser complexa, diferenciada mesmo em sua estruturação. Para muitos, fui pretensioso; para outros, poucos, o veredito foi o de que me perderia nas teias que eu próprio construía a partir das relações inferidas de fontes com naturezas tão diferentes.
As críticas foram duras, muitas vezes injustas, algumas vezes pertinentes. O fato é que o contexto no qual me inseri como pesquisador (Universidade Federal Fluminense) era bastante conservador, pelo menos no que se refere à metodologia que utilizei. Para os marxistas de plantão, que buscavam encontrar verdades políticas na ciência no passado, eu não passava de um equivocado, que colocava a perder todo o meu trabalho buscando em fontes secundárias (a tal literatura, principalmente) conclusões insustentáveis. Parecia que o velho Machadão e as crônicas (nem gênero literário é, a bem dizer...) nada podiam acrescentar a uma pesquisa histórica que se pretendia séria. A iconografia era tolerada, já que, no início dos anos noventa, historiadores marxistas brasileiros, como o próprio Ciro Cardoso, já aceitavam as imagens como fontes relevantes para a pesquisa histórica.
Para os adeptos da Nova História, então em moda e em conflito com a ciência marxista, minhas hipóteses e minha abordagem teórica eram totalmente incompatíveis com os resultados possíveis de se extrair do meu corpus documental. Como estudar o campo político, como sugere Pierre Bourdieu, numa pesquisa histórica cujo objeto era as reformas urbanas no Rio de Janeiro do início do século passado? Como considerar relevante a questão teórica do espaço, como colocada pela Geografia, num trabalho de historiador? E como a semiótica peirciana se conectava com todo o resto? Trata-se de uma salada teórica; no jargão acadêmico e filosófico, cometi o pecado do relativismo.
Não pretendo, por ora, descrever todo o processo de trabalho de minha pesquisa, especialmente com as fontes. A principal ‘lição’ que recebi, todavia, é que o pecado do relativismo torna-se uma marca indelével na face do pesquisador que busca algo mais (ou menos...) que a ciência. De que lado ficar: da verdade ou da suposição dela? Da realidade ou das ideias? Do pragmatismo ou do cientificismo? Acho que não conseguiram me classificar; e, então, fui colocado num limbo, uma espécie de purgatório acadêmico, no qual até hoje devo expiar meus pecados!
A cisão realismo/objetivismo perdura no seio do pensamento ocidental ora dormente como um vulcão, ora sedento de vida como um adolescente. Alguns pensadores ainda tentam resolver tal dicotomia, especialmente a partir da filosofia  verdadeira origem desta batalha interminável. Autores como Richard Rorty, Willard Quine ou Paul Feyerabend podem nos auxiliar nesta reflexão, recolocando pragmatismo e idealismo em situação de igualdade. Na verdade, o que devemos ter como norte acadêmico (e pessoal, por que não?) é a liberdade de escolha, negando os dogmatismos reducionistas; repudiando as doutrinas engessantes; recusando-se a comungar com o resíduo autoritário e conservador que ainda rege a vida profissional (e pessoal, por que não?) de uma pequena constelação de iluminados de nossas academias.

Rodolfo Maia Souza
Mestre em História Social e Professor da FAFIMA
http://www.rodolfomaia.blogspot.com/
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé

3 comentários:

Victor Tempone disse...

Parabéns pelo texto e pelo tema. è, sim, verdade, que precisamos nos livrar dos dogmas impostos pelo "main stream" acadêmico. É verdade que os paradigmas acadêmicos têm relevância, mas a inovação, novas visões teórico-metodológicas devem ser levantadas para a própria evolução do pensamento/conhecimento. Eu tive um problema parecido ao fazer análise das relaç~ies internacionais a partir da visão crítica de Horkheimer e da Escola de Frankurt. Valeu, Rodolfo.

Ivana Matos Pinheiro Tavares disse...

Parabens Rodolfo!!!!
Um artigo como o seu nos mostra que
devemos persisitir em nossos objetivos, quando vemos neles uma oportunidade de mostrar uma nova visão dos fatos.
Isso é a verdadeira História na minha concepção.

Ramon Mulin disse...

Concordo com o Victor, realmente temos que derrubar esses dogmas, porém se tornar-mos militantes por essa causa vamos ficar para tras... Mas o seu texto tá brilhante cara! Quem me dera chegar a ter um vocabulário desses - pelo menos ao seguinte momento, pois estou ralando muito para chegar a tal ou melhor.
Grande Abraço!