terça-feira, 9 de março de 2010

EM 1914, UMA GUERRA... CONTRA A MODA!!! - Semana da Mulher

Em 1914, declarava-se a Primeira Guerra Mundial nas terras europeias. O mundo vivia tempos de intensas mudanças políticas e econômicas, época de imperialismos declarados, expansões de mercado e salários baixos nas fábricas. Entretanto, não apenas questões  econômicas constituíam o panorama do primeiro momento desse século. A civilização mundial vivia um tempo de brilho e fascínio, um momento que ficou conhecido como Belle Époque, marcada por avanços tecnológicos, novas noções de civilidade e de higiene. Uma era de mudanças e de conflitos -  o advento das máquinas, o surgimento da fotografia - que faz nascerem os álbuns de família - e o jornalismo fotográfico, a realização do impossível, como o histórico voo de Santos Dumont com seu 14 Bis, em Paris, e os encantos das "divas" do cinema - a primeira diversão de massa da era industrial.
Pelas ruas das principais capitais brasileiras se ouvia agora não mais o trote dos cavalos, mas o som das ruidosas buzinas dos automóveis que circulavam e que, mesmo sendo um luxo para poucos, inauguravam o que seria o sonho de consumo de muitos durante o século XX.
Esse progresso econômico das grandes capitais brasileiras refletia-se em sua vistosa elite. Nessa, encontravam-se mulheres muito bem educadas, dotadas de um refinamento cultural, sempre interessadas nas notícias e na moda europeia, que as inspiravam a visitas regulares às modistas da época, e que acabavam por chocar os setores mais conservadores da sociedade e, em especial, a Igreja Católica.
A preocupação com as vestimentas femininas no início do século XX pode ser sentida a partir dos jornais católicos que circulavam em abundância nesse período. Um forte exemplo é o jornal semanal “A Época”, que circulou entre as décadas de 1910 e 1920 na região de Florianópolis, no estado de Santa Catarina, produzido pela Federação das Associações Católicas.
No ano de 1914, enquanto o mundo via o início, no Velho Continente, de um conflito que teria consequências a nível mundial – a Primeira Guerra Mundial –  encontra-se instaurada, no semanário “A Época”, uma outra guerra: a guerra contra a moda, contra as mudanças nas vestimentas femininas, contra os encurtamentos e a ampliação dos decotes.
No final do século XIX e nos  primeiros anos do século XX as roupas femininas eram geralmente precedidas de espartilhos que espremiam os rins e o fígado, pois o almejado corpo feminino eram “cinturinhas de marimbondo” e “traseiro em tufo”, em uma moda que acabava sendo uma tortura para as mulheres.
Durante a década de 1910, as mulheres, ou o “belo sexo’, ou ainda o “sexo frágil”, como eram conhecidas, mudam, influenciadas pelo desenvolvimento urbano, pela imprensa e pelo cinema. A grande critica dos cronistas de “A Época” centrava-se na crítica às novas representações femininas, que não estavam vinculadas ao espaço domestico, mas nas figuras deslumbrantes e sedutoras das divas  do cinema, que ostentavam saias cada vez mais curtas, destacando em cada peça de sua vestimenta, uma destaque maior às suas curvas.
Assim, contra essas novas tendências, os católicos mais fervorosos podiam encontrar nas páginas do jornal “A Época” artigos como “Os Caprichos da Moda”, em que se apresentavam argumentos contra “as  inconveniências e os escândalos da moda”, uma vez que  a “modéstia das mulheres cristãs é a pérola dos costumes, o esplendor de uma alma pura, a sede da virtude”, e que concluía conclamando as boas “mulheres cristãs” a uma “cruzada” contra os abusos das modistas modernas que “escandalosas, desconhecem essa virtude que faz da mulher o adorno da sociedade”.
Em uma análise um pouco mais apurada pode-se perceber que o que estava realmente em voga não era a moda, mas sim a representação da mulher enquanto mãe, dona de casa e esposa, reclusa ao espaço privado. Tratava-se de uma tentativa de resistir à emancipação feminina, às mudanças nas relações familiares nas quais as regras eram ditadas pelo pai, num sistema em que o espaço público da política e dos negócios pertencia exclusivamente ao homem, e a mulher cabia o espaço doméstico, como submissa súdita do homem, assim como singela rainha do lar.
Como afirmavam os cronistas de “A Época”: “não reprovamos absolutamente a moda  porque esse gosto se experimenta pela novidade (...)”, mas a preocupação residia nas regras de “bom tom” a serem seguidas ao escolher uma roupa da moda, pois os vestidos poderiam ser “cúmplices das paixões, máscaras de indignidades, paládios de vícios, escravos de corações mesquinhos” (A Época, 7 fev. 1914). Era o medo da sexualidade feminina.
No mês de julho de 1914, um artigo foi publicado em “A Época”:  “Uma rainha contra a moda”, que segundo este periódico tratava-se de uma transcrição de um artigo publicado em outro jornal austríaco e no qual a rainha da Romênia teria exposto sua opinião sobre a moda:

“Escrever sobre a moda? Como poderei fazê-lo eu que julgo detestável todas as modas, devido ao fato de todas as mulheres seguirem. (...) Em todo caso julgo que a mulher deve sempre permanecer misteriosa: o corpo dela coberto e a lama fechada. (...) Na rua aparecer o menos que seja possível. Em casa correta, digna e pudica de sorte que o marido e filhos a tenham em conta de uma divindade.” (A Época 25 jul. 1914)

A rainha ainda arremata: “Eu sou, na moda, mais antiga ainda, visto que admiro as famílias com sete ou doze crianças, que cresceram fortes sob as asas duma mãe maravilhosa.”
A preocupação com a emancipação feminina e com sua saída do espaço privado sustentava-se na reafirmação de que o verdadeiro “destino” feminino poderia resumir-se a maternidade:  “(...) a mulher, a mãe são aquilo que a sociedade elevada quer – esposas dedicadas, operosas e prontas a todos os grandes acontecimentos.” (A Época 14 nov. 1914)
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O papel feminino estava, para os redatores deste jornal católico, tão ligado ao lar que chegaram a noticiar um projeto que teria sido apresentado à Câmara de Deputados da Noruega, onde estava previsto a obrigatoriedade de que cada noiva realizasse antes do casamento um exame de prendas domésticas. Entre as provas estavam lavar, passar e cozinhar, isto tudo para que se garantisse um sucesso no casamento e a paz no futuro lar.
Apesar do artigo não deixar claro sobre qual teria sido a receptividade desse projeto na Noruega, seguiu-se o comentário:  “Esses deputados da Noruega não deixam de ter razão, não acham, leitores?” (A Época 30 jan. 1914).
Obviamente, todos esses discursos católicos apenas estavam ganhando espaço porque em vários setores da sociedade, as mulheres já sinalizavam para um avanço nas relações de gênero, buscando uma sociedade mais igualitária. Entretanto, percebe-se que mesmo quase um século tendo se passado, ainda é  possível encontrar discursos similares a esses que discorrem sobre a mulher, seu espaço social e sobre a regulamentação de seu corpo, que assustam pela semelhança.



Ana Claudia Ribas
Mestre em História do Tempo Presente e Doutorando Interdisciplinar em Ciências Humanas
Universidade do Estado de Santa Catarina

Um comentário:

Ivana Matos Pinheiro Tavares disse...

Ana Claudia,
Adorei seu texto.Uma viagem pelo complexo mundo em que vivemos. Quando os avanços tecnologicos deveriam trazer prosperidade e unidade, acabam por trazer junto os efeitos de uma sociedade insatisfeita que quer gerar distanciamento de classes.
A mulher sempre acaba por pagar um preço alto.
Parabéns
Ivana Matos Pinheiro Tavares