Introdução:
Os estudos
acerca da violência no Brasil, mais especificamente a violência urbana,
conduzem à reflexão sobre algumas contradições que avultaram no país nos
últimos anos, exatamente a partir do instante em que o Brasil se estruturava
como um estado democrático de direito, deixando para trás os anos obscuros da
ditadura militar. Tais contradições se desvelam em torno de alguns fatos
incontestáveis: as crescentes taxas de criminalidade, principalmente de
homicídios entre jovens, a partir dos primeiros passos para a redemocratização,
dados por volta de 1980; uma nação que se edificou estribada na cordialidade e
na conciliação e que se descobre carente de cidadania; um tecido social
mergulhado em incontroláveis compulsões agressivas precisamente no momento em
que se estabeleceu a paz e o perdão dos anos de regime militar, malgrado esta
pacificação não haja sido publicamente discutida.
As taxas
médias de homicídios entre homens jovens de 15 a 29 anos aumentaram em todo o
país nas décadas de 1980 e 1990. Ao se atingir o ano 2000, 93% dos casos eram
de homens jovens mortos.Para se compreender tal fenômeno pretende-se aqui
realizar uma análise interativa, isto é, vislumbrar os fatos a partir do
contexto internacional bem como da dinâmica interna do país, adequando-se os
dois olhares. Liminarmente abordando-se sobre a relevância das explicações
macrossociais acerca da criminalidade violenta, como a miséria e a consequente
exclusão social, quando observadas nas suas interações com os aparatos
transnacionais do crime organizado, no que tange ao tráfico de drogas e de
armas de fogo e que expôs à sua perversa influência a juventude tornada
vulnerável por estas condições em muitos países.
Por outro lado, é
relevante que se focalize a inércia institucional conducente às contínuas violações
dos direitos civis, assim como a ineficácia do aparelho judiciário, cujas
raízes históricas são profundas e articulam-se ao campo político. É preciso,
também, já num olhar sobre os processos microssociais, entender a concepção que
esses grupos têm da masculinidade conectada com a exibição de poder pela força
e a posse de armas de fogo. É igualmente relevante, nesta análise, assinalar
historicamente os processos institucionais de longa duração, pois é a partir
deles que se formam as práticas de violência do Estado contra os despossuídos
em geral, assim como a violência dos jovens pobres entre si, numa sociedade
precariamente governada pela lei. Sempre houve, no Brasil, uma discrepância
entre os direitos formais, amparados por lei, e o que realmente se pratica.
Assim sendo, mais do que enfocar o direito positivo, deve-se, principalmente,
observar enfaticamente os processos histórico-sociais, com suas regras e
práticas implícitas nas ações dos agentes.
A Indústria
do Crime:
Uma
das questões sociais que mais afligem os dias de hoje é a da incapacidade de se
controlar o uso de drogas ilícitas, e mais ainda, os baldados esforços para se
dar um fim, ou minimamente se reduzir a níveis socialmente aceitáveis, o
sinistro sistema criminal que faz estas drogas circularem por todo o mundo, com
uma logística de uma eficiência impressionante. É muito comum se dizer que o
mercado ilegal das drogas é, atualmente, um dos mais vastos setores da economia
mundial; todavia, é apenas uma fatia do sistema de operação da indústria do
crime organizado, que funciona em vários setores utilizando-se de redes e
mecanismos semelhantes, para terem aparência de operações limpas e legais. Como
os diferentes setores econômicos, mormente os ilegais, se movimentam tanto no
mercado formal como no informal e constroem setores legais e ilegais, claro
está que facilmente conectam instituições governamentais ao comércio de drogas,
penetrando este último nos setores legais da sociedade. Esses setores
frequentemente exercem suas atividades na economia formal, mas auferem uma
parte considerável de seus lucros a partir das operações do tráfico de drogas e
de outros tráficos. Tais atividades são diversificadas uma vez que se
concretizam junto com outras ações criminosas, tais como o roubo de determinados
bens utilizáveis como moeda de troca na aquisição das drogas.
Essas atividades também seguem as redes financeiras para a lavagem do dinheiro
oriundo de uma variada gama de atividades ilegais, como a corrupção
governamental, o contrabando, o tráfico de armas, etc. Isso é muito evidente
quando se lança um olhar mais acurado nos negócios realizados pelas redes de
bancos, nas companhias que operam no mercado imobiliário, ou nas empresas de
transporte, as quais fornecem serviços para os negócios ilegais e as principais
ligações para a lavagem do dinheiro sujo. Mas isso não é um mercado aberto a
todos. Muito pelo contrário, mesmo aqueles que sempre agiram na ilicitude só
serão admitidos em tais segmentos altamente lucrativos se tiverem o beneplácito
daqueles cujo status nessas redes criminosas seja o mais elevado. Assim,
numa situação de pouco crescimento econômico, um número maior de pessoas pode
ser atraída à arriscada indústria do crime e passar a organizar as suas
operações de modo a obstruir as ações policiais e o processo judicial, dando
vazo ao jogo sujo e necessariamente violento das atividades contra e fora da
lei.
O
crime organizado transnacional, notadamente o tráfico de drogas, aumentou muito
a violência de suas ações operacionais, levando a uma escalada exponencial os
índices de criminalidade e tornando dramática a situação de países como o
Brasil. O Secretário Geral da ICPO (International Criminal Police Organization
– Interpol), Sr. Robert Noble, em discurso no Dubai, Emirados Árabes Unidos, em
2011, afirmou:
(...) Os que ocupam posições estratégicas nas
grandes redes de conexões transnacionais podem ter rápidos ganhos em razão de
uma combinação de poucos limites institucionais, violência e corrupção.
Mundialmente eles fomentam práticas subterrâneas e violentas de resolução de
conflitos: as ameaças, a intimidação, a chantagem, a extorsão, as agressões, os
assassinatos e, em alguns países, até mesmo o terrorismo.Seria melhor se as
forças de polícia não fossem empregadas para caçar os consumidores de drogas ou
os pequenos negociantes, e atribuíssem muito mais seus recursos à repressão de
grandes traficantes e de lavadores de dinheiro sujo.
No Brasil, infelizmente, a legislação e o exercício policial se voltam
para a repressão aos pequenos negociantes de drogas, negligenciando o combate
aos grandes empresários desse negócio ilícito e aos seus cúmplices de colarinho
branco. A corrupção institucional, a irreverência pela lei e a ineficácia dos
sistemas policial e judiciário são, sem dúvida, propulsores da insuportável
elevação dos índices de violência urbana e da propagação, em ritmo desastroso,
do comércio das drogas. No Brasil, somente depois de um avanço muito grande dos
tentáculos da estrutura do tráfico, é que as instâncias do Estado encarregadas
do seu controle e repressão passaram a se ocupar de sua força organizacional,
principalmente de suas conexões com a economia formal e as instituições legais.
Malgrado na década de 1990 o Estado tenha ampliado o investimento para
sofisticar o seu aparato investigativo, só recentemente foi despertada a devida
atenção aos interesses econômicos e políticos que estão relacionados com a
economia das drogas, especificamente com as imbricações que se constituíram
entre os segmentos formais e informais da economia, entre o legal e o ilegal,
entre o mundo visível e o invisível. Embora o Departamento de Polícia Federal
tenha investigado o crime organizado nos últimos anos, os aparelhos de
segurança pública dos estados, com suas polícias civis e militares, intervieram
apenas na repressão violenta às áreas de população mais pobre das regiões
metropolitanas, o que de forma alguma serviu como solução para o problema e
sequer diminuiu a sensação de insegurança entre os moradores das cidades.
A Nova Criminalidade e o Aprisionamento às Drogas
Pode-se
afirmar que o recrudescimento no uso de drogas decorre das alterações havidas
nos estilos de vida social, os quais, por sua vez, modificaram o que Sassen
qualifica de “consumo de estilo”.Ainda segundo esta socióloga, o comércio de drogas é o setor
ilegal de distribuição de bens e serviços daquilo que denomina “consumo maciço
de estilo”. Desta forma, ampliaram-se as vias que intensificaram a ocorrência
de certos crimes contra o patrimônio, como os roubos e furtos, e contra a vida,
como as lesões corporais decorrentes de agressões e os homicídios.
Após o fim da II Guerra Mundial, houve uma aceleração nas transformações
políticas, econômicas e culturais das sociedades; tais transformações se
materializaram com a fragmentação social e com a cada vez maior importância
dada ao lazer e ao consumo como instrumentos de definição de novas identidades
sociais, especialmente no que tange aos jovens. No que se refere ao controle
social, estas alterações superestruturais tornaram-se indicativos de que os
liames morais convencionais (que prescindem da lei) tornaram-se fracos, estando
este controle muito mais nas atividades policiais de vigiar e aplicar a lei.
Efetivamente, esta nova forma de
consumo chegou ao Brasil com uma plêiade de bens de consumo e de estilos de
consumo sempre renovados. No que diz respeito à formação subjetiva dos
componentes dessa sociedade renovada, os seus valores culturais acompanharam as
transformações, até para lhes dar sustentação. Assim, a exacerbação do
individualismo e do lucro a qualquer preço se disseminaram durante os anos 1970
e 1980, tornando popular a expressão tirada de uma propaganda de cigarros cujo
mote era: “levar vantagem em tudo”. A sociedade brasileira, portanto, foi
cooptada por um mercado que passou a carecer dos limites morais usualmente
fornecidos pelo próprio tecido social. Favorecido pelos novos parâmetros, o
comércio das drogas, como atividade ilegal e invisível, passou a fazer parte
desse novo ambiente social, econômico e cultural.
Seria simplificador ao extremo querer
explicar o crescimento de tais negócios ilegais no Brasil apenas a partir das
alterações do consumo e da pobreza, uma vez que sob o prisma econômico, social
e institucional, as desigualdades persistem. Assim, essas formas de atividades
econômicas ilegais e violentas não devem ser consideradas como estratégias de
sobrevivência para os jovens, que na sua maior parte morrem antes de
completarem 25 anos de idade. Os resultados advindos pela combinação entre
pobreza e urbanização acelerada, sem que haja o adequado desenvolvimento
econômico capaz de ofertar emprego urbano aos migrantes e aos trabalhadores
pobres, não são, por si só, suficientes para se compreender os conflitos
armados que vitimam os homens jovens.
Esta questão deve ser debatida, numa
perspectiva mais profunda e complexa, a partir da relação existente entre a
pobreza e a falta de emprego, por um lado, com os mecanismos e fluxos
institucionais ineficientes de combate ao crime organizado, por outro. E aqui
não é demais ressaltar que o crime organizado, em sua verdadeira acepção,
percorre todas as classes sociais e mantém estreita ligação com negócios legais
e com governos.
Um célere processo de urbanização,
ademais, faz com que a tolerância e a civilidade, práticas sociais comuns na
vida citadina, não sejam difundidas entre seus novos habitantes, assim como
certos valores morais tradicionais não sejam absorvidos por essas gerações.
Desta forma, muitos homens jovens são atraídos pela indústria do crime em razão
de crise em suas famílias, muitas delas sem condições de administrar as
questões decorrentes de uma vida urbana imprevisível e multifacetada.
Tornam-se, ainda, vulneráveis em função do abismo aberto entre jovens e
adultos, em razão de um sistema escolar deficiente e da falta de treinamento
profissional, além do insuficiente número de empregos ofertado pelo mercado de
trabalho. E por fim tornam-se violentos face à falta de socialização da
civilidade e da negociação, características próprias do mundo urbano
cosmopolita, o qual é naturalmente mais diversificado e menos segmentado em
grupos fechados de parentesco ou localidade.
Breve Histórico da Violência no Brasil
Em
sua origem, a violência no Brasil era predominantemente rural. Mas o fato desta
violência ser, nos dias de hoje, majoritariamente urbana, não rompe os laços
que relacionam esses dois fenômenos. No Brasil, como em outros países, existe
uma história de longa duração de violência institucional;
mas aqui se sobressaiu a violência privada, pois, diferentemente de outros
países, os conflitos políticos, étnicos ou religiosos não redundaram em guerras
civis.
O processo eleitoral no Brasil sempre
foi, e de certa forma continua sendo, estruturado em torno de clientelas e
múltiplos mediadores. Os latifundiários mais poderosos, os chamados “coronéis”,
procuravam agradar os seus pares, mesmo os “coronéis” de menor poder, para
alcançarem os postos no Parlamento ou mesmo no Executivo. Destarte, os votos dessa
clientela eram adquiridos com benefícios e serviços privados, com melhorias
locais e pressão sobre os eleitores, o conhecido “voto de cabresto”. O
equilíbrio entre o governo central e as oligarquias tornou a negociação e a
manipulação fatores mais importantes do que os conflitos abertos e violentos,
malgrado eles tenham ocorrido em diversas ocasiões de forma localizada, mas sem
nunca cindir todo o país. Esta estrutura sócio-política ganhou, durante o
governo de Campos Sales, uma forma institucionalizada a partir do
estabelecimento da política dos governadores, cujo objetivo era a cooperação
entre o poder federal e os chefes políticos locais.
Da mesma forma, a escravidão jamais dividiu o país
numa guerra civil, muito embora sua instituição, por si mesma, representasse
séculos de violência interpessoal. Algumas revoltas terminaram em compromissos
entre os escravos e seus senhores, nos quais era barganhado o direito de tocar
seus batuques, dançar e praticar rituais religiosos.
O bacamarte, o fuzil ou o revólver nunca tiveram no
Brasil a importância simbólica que lhes foram dadas em outros países, não
obstante também terem aqui sido usados em vários conflitos. Diferentemente dos
Estados Unidos, quando da marcha para o oeste após a guerra civil, no Brasil
não se criou um culto às armas de fogo; todavia, a violência ocupou um lugar em
nosso imaginário social, se bem que de forma bem mais restrita. Assim, a
violência privada, acrescida das desigualdades de natureza social, econômica e
jurídica, se tornaram fenômenos marcantes da formação social de então e
permanecem até hoje, evidentemente transformadas para adequarem-se a uma nova
conjuntura.
Não resta dúvida de que a violência privada era
privilégio dos grandes proprietários rurais. Os “coronéis”, que ficaram assim
conhecidos por terem sido agraciados com esta patente quando da formação da
Guarda Nacional no Império, comandavam suas hostes de jagunços, então
transformados em milícia, para executar suas vinganças pessoais; tais fatos
eram muito comuns numa sociedade segmentada por grupos locais e de parentesco e
que disputavam entre si o poder e a propriedade da terra. Estas guerras de
famílias marcaram a história da violência no Brasil rural até os nossos dias,
particularmente no Norte-nordeste; foram os setores mais violentos do Brasil
durante décadas. Nesses locais onde imperavam os chefes locais, os juízes não
tinham autonomia e os seus julgados quase sempre beneficiavam os poderosos,
cujos crimes ficavam impunes. Assim sendo, a impunidade demonstra ser,
historicamente, um fenômeno de longa duração no Brasil. Da mesma forma, as
instituições policiais foram criadas com o intuito de proteger e dar
sustentação aos proprietários de terras e a eles submeterem-se, reprimindo
somente as classes mais pobres, os negros e os indígenas. Por consequência, a
ocorrência de fenômenos como os do cangaço no nordeste brasileiro, ou ainda de
bandos armados em outras regiões do país, se explicam pela insatisfação com o
funcionamento injusto e imoral das instituições de Estado, cuja ação satisfazia
apenas aos interesses das classes dominantes da época.
A Herança do Clientelismo: a falta de
cidadania
Com o declínio do coronelismo,
surgiu um novo tipo de clientela mais adequada a novos tempos, que foi aquela
organizada pelos partidos políticos que, para tanto, se utilizavam de
benefícios obtidos junto ao governo e aos cofres públicos. Foi, e tem sido, uma
forma instável de manter a clientela, uma vez que esta não enxerga muita
legitimidade nos políticos e os considera falsos patrões e amigos.
Apesar disso, o sistema se manteve, pois, com sua manipulação autoritária,
conseguia ganhar os votos dos eleitores ao mesmo tempo em que mantinha
estagnado o compromisso com suas demandas. É a mesma manipulação que se observa
hoje no Congresso, como ferramenta para se obter a maioria do plenário e assim
aprovar as ações de interesse do governo. Foi essa forma de negociar os votos
dos parlamentares que abriu as portas para a corrupção que se institucionalizou
em nosso Parlamento e que persiste, cada vez mais entranhada, até o presente.
Efetivamente, malgrado tenham se alternado momentos de centralização com outros
de descentralização, além das vezes em que o estado democrático de direito foi
usurpado, o Poder Legislativo foi institucionalizado no Brasil desde a sua
independência; mesmo com alguns retrocessos, a tradição parlamentar liberal no
Brasil é um fato incontestável. Estribado na força que sempre tiveram as
oligarquias de diferentes regiões do país, o Parlamento brasileiro demonstrou ser
mais poderoso do que pensavam os próceres dos autoritarismos de diferentes
matizes e do regime militar vigente no Brasil entre 1964 e 1984. O Congresso
Nacional só foi fechado no decorrer do Estado Novo e, por curto período,
durante o regime militar. E mesmo neste último período, os políticos que
convalidavam as decisões do regime eram industriados no jogo das concessões e
dos privilégios para as empresas privadas e governos estaduais ou municipais
indicados pelos parlamentares em tela. O governo militar manteve em andamento o
sistema de corrupção imbricado ao clientelismo, detendo assim o controle sobre
os congressistas.
O processo de abertura política
iniciado no final da década de 1970 não alterou o jogo entre o Executivo e o
Legislativo. O que deveria ser um processo de democratização cingiu-se aos
direitos políticos e ao sistema eleitoral: o voto direto para a eleição do
presidente da República, mesmo assim negado num primeiro momento com a não
aprovação da emenda Dante de Oliveira.Esta
democratização não regenerou a cultura urbana da tolerância e nem a vocação da
negociação. Uma das mais dramáticas consequências dos regimes de exceção é a
destruição da cultura democrática, que se desvela nas práticas sociais
cotidianas de respeito e de civilidade para com o outro, sendo, destarte,
fundamentais ao exercício da cidadania. Não resta dúvida que, apesar de ter
dado continuidade a algumas práticas de negociação no Congresso, o regime
militar rompeu o liame que estendia tal prática às demais formas associativas
institucionais, como sindicatos, organizações classistas, associações de
moradores, clubes. Houve uma clara intervenção nos sindicatos, o que levou
muitos de seus líderes a militarem nas vizinhanças, sob a intensa restrição de
um aparelho policial treinado para adotar as práticas repressivas da doutrina
de segurança nacional, isto é, da guerra contra os “inimigos internos”. Os
conflitos de classes deslocaram-se, portanto, do local de trabalho para o local
de moradia, onde as reivindicações encontraram uma forma de restabelecer as
práticas clientelistas dos políticos atrás de votos. Nas associações, o emprego
numa escala cada vez mais ampla de ações e práticas autoritárias foi se
consolidando ao longo dos 20 anos de ditadura, tornando a brutalidade e a violência
das incursões policiais a estes lugares algo banal e corriqueiro.
Da Segurança de Estado à Insegurança
Pública
Nem tudo foi devidamente planejado
pelos segmentos dominantes do regime militar. Algumas de suas ações tiveram
consequências não almejadas que ajudaram a mudar o quadro da criminalidade e de
sua repressão.
Em razão do emprego da tortura, da
prática de prisões ilegais (ou minimamente ilegítimas) e do exercício da
censura, o regime militar pavimentou a via para o crime organizado se alastrar
por vários setores. Alguns oficiais, que haviam integrado os porões da
repressão, se organizaram em grupos de extermínio e extorsão, ou ainda se
associaram a banqueiros do jogo do bicho, ou mesmo tornaram-se eles mesmos
banqueiros desta contravenção, além de se envolverem com o tráfico de drogas.
Foi nesta ocasião que os bicheiros passaram a controlar as escolas de samba e o
seu desfile, tornando-as empreendimentos lucrativos. O clientelismo acentuado
nos anos de chumbo, assim como a nova ideologia das comunidades acabaram, por
seu turno, por recriar a segmentação rígida em bases locais. A favela toma o
nome de comunidade, sem ter, na verdade, tal característica, já que possui um
caráter interno multifacetado pela diversidade socioeconômica, religiosa e
cultural. Essa segmentação foi a via de acesso e domínio das áreas de favelas
pelos traficantes. Ademais, os militares que se associaram ao crime organizado
ficaram protegidos à sombra da Lei nº 6620 de 17 de dezembro de 1978 (Lei de
Segurança Nacional) e pela Lei nº 6683 de 28 de agosto de 1979, a chamada Lei
da Anistia. Como esta última lei proibia que se formalizassem acusações acerca
de atos ilícitos cometidos pelos militares neste período, esses personagens,
que difundiram as práticas do crime organizado, permaneceram impunes. Nunca é
demais frisar que esta forma de conciliação, imposta pelos militares, tinha por
escopo banir da memória social a mera lembrança de quaisquer daqueles atos
ilegais, e que isto foi feito sem um debate público que legitimasse o perdão e
a reconciliação conscientes por parte dos cidadãos do país.
O resultado disso é que tampouco
foram discutidos os resultados decorrentes do aumento da militarização das
polícias e nem as formas de ação policial, absolutamente superadas, que se
confrontavam com um universo criminal agora regido por organizações
transnacionais ligadas a empreendimentos estritamente legais. Uma vez que as
reformas do sistema judiciário não avançaram na medida das novas necessidades e
que as alterações nas práticas policiais também trouxeram evoluções pontuais
nas áreas de investigação e repressão, pode-se afirmar que os efeitos do regime
militar ainda se fazem sentir na atuação destas instituições, mormente no que
se refere ao desrespeito aos direitos civis dos cidadãos.
Durante a década de 1960, a país
viveu os tempos do “milagre econômico”, mas a riqueza gerada jamais foi
socialmente distribuída de forma justa. Assim, mesmo com o processo de
democratização do início dos anos 1980, em lugar de mais crescimento econômico,
o que se viu foi uma sucessão de crises políticas, éticas e econômicas
provocadas pela inflação galopante que assolou o sistema financeiro e, após a
estabilização da moeda, pelos vícios peculiares ao sistema político brasileiro.
Além disso, o país não apenas permaneceu com uma das piores distribuições de
renda do planeta, como também uma imensa desigualdade no que tange ao acesso
aos serviços públicos, aí se incluindo o Judiciário. Mesmo após a promulgação
da Constituição de 1988, segundo Ulysses Guimarães a “Constituição cidadã” por
teoricamente assegurar os direitos civis a todo o corpo social, as classes
menos favorecidas permaneceram sofrendo graves violações desses direitos,
principalmente no que diz respeito às ações policiais.
A economia brasileira tornou-se
moderna e diversificada, mas as práticas de suas instâncias políticas e
jurídicas não marcharam no mesmo passo. Desta forma, mesmo os segmentos
econômicos mais dinâmicos e de ponta se voltaram para o cometimento de
ilicitudes como, por exemplo, a prática de “caixa dois”, a maneira que empresas
encontraram para descumprir suas obrigações tributárias. É dessa mesma fonte
que saem os fundos que financiam as campanhas eleitorais dos candidatos que
irão conceder a estas mesmas empresas privilégios e contratos governamentais
sem licitação, obrigatória pelos cânones do direito administrativo brasileiro.
O país agora é uma democracia eleitoral: os interesses envolvidos e o elevado
custo das campanhas políticas, todavia, levaram à prática costumeira de os
candidatos receberem contribuições, nem sempre admitidas, oriundas de várias
fontes, incluindo-se aí a dos negócios ilegais.
A inflação aguda em que o país se
viu mergulhado até 1994, por outro lado, não foi apenas um fato econômico, mas
também um fenômeno social de cunho material e simbólico a um só tempo.
Os efeitos perversos sobre os costumes e valores da população foram imensos,
mais ainda para aquela que vivia de salários que se desvalorizavam de 60% a 80%
ao mês. Este quadro permitiu que as redes do crime organizado fincassem suas
garras no país, uma vez que contribuiu para criar as miragens do dinheiro fácil
e da lavagem desse dinheiro, em razão da rapidez e da volatilidade do capital
financeiro. Aqueles que haviam começado a perpetrar pelo mundo crimes
econômicos cada vez mais audaciosos, no Brasil encontraram condições ainda mais
favoráveis em função das crescentes dificuldades de se fiscalizar os registros
bancários e de se controlar os orçamentos e contas públicos.
Com o sucesso do Plano Real, a inflação foi
freada e a moeda do país estabilizada, restando assim a volatilidade e a magia
de novos arranjos financeiros internacionais e a continuidade de sistemas
mundiais de lavagem do dinheiro sujo, originados tanto da corrupção
governamental como do tráfico de drogas. A partir de então, os crimes
financeiros passaram a ser olhados mais acuradamente e alguns criminosos de
colarinho branco foram processados criminalmente. Mesmo assim, os bancos
brasileiros ainda lucram muito mais com os jogos financeiros do que com os
financiamentos ou empréstimos.
O nascimento de um novo mercado
informal, só que agora também ilegal, é outra contradição brasileira. Os
mercados informais sempre existiram no Brasil e se constituíram numa importante
fonte de renda para aquelas pessoas pouco qualificadas ou desempregadas. Tais
mercados criaram regras para organizar o comércio de artesanatos nos principais
logradouros públicos dos maiores centros urbanos. Nos últimos anos, todavia,
essas ruas e praças passaram a ser ocupadas por vendedores ambulantes que negociam
produtos de roubos a caminhões, residências ou transeuntes. Ficou famosa a
feira de Acari, no Rio de Janeiro, popularmente conhecida como “robauto”, já
que tinha como principal atividade a venda de peças de automóveis furtados ou
roubados. O comércio informal, há
décadas uma alternativa para o desemprego ou o subemprego, viu-se atrelado a
empreendimentos criminosos. Esse tipo de atividade também é praticado em alguns
ferros-velhos, ourivesarias, oficinas mecânicas e antiquários, os quais se
tornaram locais de receptação e lavagem de dinheiro. Empresas do setor de
transportes fizeram parte da rede de roubos de cargas nas estradas do país. E
isso só é possível graças a um eficiente esquema de corrupção.
Há, ainda, outro elemento deveras
importante para o aumento dos índices de crimes violentos no Brasil: o
funcionamento precário e desigual do sistema judiciário, não só por sua
estrutura, como também em razão de uma legislação Penal e Processual Penal
defasada, mesmo com as reformas que lhes foram introduzidas ao longo dos
últimos anos. Assim cresce e se agiganta a impunidade e a indulgência para com
as práticas ilegais. Novamente as interconexões entre os interesses políticos e
econômicos e o funcionamento ineficaz das instituições do Estado se revelam. Apesar
do Poder Judiciário ter independência decisória, é o chefe do Poder Executivo
quem designa os membros do Conselho Fiscal, que inspecionam as despesas
públicas da Justiça. São também os governadores quem indicam alguns dos
desembargadores dos Tribunais de Justiça, assim como, em seu próprio Poder,
influem decisivamente na escolha dos chefes da Polícia Civil e dos comandantes
dos batalhões da Polícia Militar. Todos esses cargos são fontes de corrupção,
tanto por estarem atrelados a barganhas políticas, como pela consequente falta
da autonomia necessária para um combate eficiente, em todos os níveis, aos
transgressores das leis.Isso acabou por levar ao desenvolvimento de uma atitude
de cinismo e descrença nos valores morais, mesmo de desprezo a eles, bastante
acentuados entre aqueles que se voltam para a prática do crime, seja lá qual
for a classe social de que provenham. Isso os distingue radicalmente dos
bandoleiros rurais, que se juntavam ao cangaço por razões morais, ligadas ao
parentesco e ao injusto funcionamento das instituições brasileiras.
A tão necessária e premente reforma do Estado se
arrasta nos gabinetes do poder. O funcionamento deficiente e injusto do
Judiciário brasileiro desempenha um papel agudo na crise da moralidade e na
fragilização do etos do trabalho, o
que produziu a difusão da prática do crime por todas as classes sociais. É
realmente necessário que se responsabilizem, com mais transparência e efetiva
punição, os agentes de delitos graves, para que se possa alterar o trágico
quadro que se pintou. Isto já está até em curso, mas com hesitações,
retrocessos e descontinuidades. Assim, vislumbra-se que o cerne da
discriminação no Brasil está na esfera institucional, isto é, nas violações dos
direitos das classes desfavorecidas: primeiramente, com os policiais
corrompidos, que formam “grupos de extermínio” que também são “grupos de
extorsão” (“mineira” no jargão policial), já que executam jovens traficantes
que habitam as áreas pobres das cidades exigindo a sua participação no dinheiro
do tráfico. Além disso, esses jovens pobres são assassinados, sobretudo, nas
guerras de quadrilhas.
Depois da II Guerra Mundial, a violência urbana, que
envolvia, na maior parte das vezes, os chamados crimes de sangue entre pessoas
que se conheciam, teve um relativo decréscimo. No
final dos anos 1970, quando o regime militar entrava em declínio, explodiu uma
nova série de homicídios, desta vez entre desconhecidos. Como entender e
explicar essa nova faceta da criminalidade?
Exatamente quando o país se redemocratizava,
houve um espantoso crescimento na quantidade de crimes de natureza violenta,
como sequestros, roubos, homicídios, na maior parte das vezes relacionados ao
tráfico de drogas e com a utilização de armas de fogo. Esses crimes se
alastraram rapidamente pelas capitais e regiões metropolitanas, além de algumas
cidades do interior do país. Nos Estados Unidos ocorreu um fenômeno similar,
mas cerca de 20 anos antes, na década de 1960.
Uma
minuciosa análise feita nos inquéritos policiais e nos processos penais
instaurados no Rio de Janeiro em 1991 revelou que 57% dos homicídios cometidos
naquele ano estavam ligados ao tráfico de drogas. Sem embargo, esse é apenas um
dos muitos indícios que apontam a correlação entre o aumento no número de
homicídios e a maior entrada de drogas e armas no país, já que esses dois
fenômenos são complementares, haja vista terem aumentado concomitantemente nos
últimos anos da década de 1970.
Outro indicador da relação existente
entre as guerras de quadrilhas do tráfico e o aumento dos homicídios é a idade
das vítimas. Embora as taxas de mortes violentas tenham crescido em todo o
país, as vítimas mais comuns são os adolescentes, mais especificamente jovens
do sexo masculino com idades variando entre 15 e 29 anos. Esses jovens se tornaram
vítimas ou autores de crimes praticados em locais públicos entre pessoas que
não eram conhecidas entre si. Este é o paradigma nos conflitos pela divisão e
defesa dos territórios e dos lucros dos traficantes de drogas. O mesmo se deu
durante os conflitos de gangues nos guetos de Los Angeles, Chicago e New York
nos anos 1960 a 1980 em função do tráfico de heroína, cocaína e crack.
Além
disso, o nível de impunidade que ocorre no Brasil torna-se também um estímulo
ao crescimento do número de homicídios, visto que um grande percentual deste
crime resta impune, em muitos casos sem que seus autores sejam sequer
identificados, em razão de investigações ineficientes coadjuvadas pela falta de
treinamento específico dos policiais, má vontade ou mesmo falta de interesse em
apurar os fatos, mormente quando se trata de homicídios praticados entre
bandidos nas guerras de quadrilhas.Um
estudo encetado junto às Varas Criminais do Tribunal de Justiça do estado de
São Paulo revelou que o maior percentual de condenações se concentra entre os
réus dos crimes de tráfico de drogas e de furto, e não entre os acusados de
homicídio e roubo, os dois crimes que a população mais teme; mas ainda assim é
importante ressaltar que muitos desses homicídios e roubos têm ligação direta
ou indireta com as drogas. Outra pesquisa comprovou que de cada 4277 registros
de homicídios, apenas 4,6% deles tiveram a autoria esclarecida. No Rio de
Janeiro, outra pesquisa mostrou que 92% dos inquéritos policiais sobre
homicídios foram remetidos de volta à polícia pelo Ministério Público em razão
da insuficiência de provas para o oferecimento da denúncia.
Cabe à
Polícia instaurar os inquéritos policiais, seja por lavratura de prisão em
flagrante ou por portaria, e instruir os inquéritos com um conjunto probatório
que permita ao Ministério Público o oferecimento da denúncia e ao Judiciário a
aceitação do libelo acusatório do promotor, com a consequente transformação do
inquérito policial em processo judicial. O pífio investimento do Estado no
aperfeiçoamento de pessoal do seu aparelho policial, a baixa motivação dos
policiais pela falta de perspectivas e os baixos salários, assim como o etos profissional corporativo, têm como
efeito imediato a deficiência do serviço prestado, aumentando assim a
impunidade. É verdade que um trabalho de recuperação e aperfeiçoamento das
atividades policiais encontra-se em curso já há algum tempo, mais visível no
Departamento de Polícia Federal, mas ainda insuficiente e precário nas polícias
civis e militares dos Estados do país. Em face dessas deficiências e problemas
estruturais, um considerável percentual de criminosos nunca é preso e nem
punido, o que encoraja a reincidência da prática delituosa.
A situação
financeira do delinquente também é um fator que gera impunidade. O oferecimento
de propina a muitos policiais faz com que um sem-número de atos criminosos
sequer chegue ao conhecimento das delegacias. Notório foi o caso do
atropelamento e morte do filho da atriz Cissa Guimarães, no Rio de Janeiro, no
qual os policiais militares que atenderam a ocorrência aceitaram oferecimento
de dinheiro para “resolver” a questão no local; não fosse a vítima filho de uma
pessoa famosa, nem o crime de corrupção passiva praticado pelos policiais e nem
o crime de corrupção ativa, perpetrado pelo atropelador e seu pai, teriam
chegado ao conhecimento das autoridades e do público. Assim como este, inúmeros
outros fatos semelhantes ocorrem sem que se tenha conhecimento deles em função
da condição financeira dos criminosos. Além disso, já têm sido descobertos
casos de corrupção no Ministério Público e na magistratura, tanto nas esferas
estaduais como na federal.Há,
ainda, para aqueles que podem pagar, os caros serviços de advogados que,
conhecedores dos meandros do sistema e das falhas existentes na legislação,
conseguem evitar, ou postergar ad aeternum,
o andamento dos processos até que prescrevam ou, na pior das hipóteses,
garantir condenações brandas.
Por essas razões, foi necessário aos
traficantes de drogas se reunirem em quadrilhas que lhes ampliassem o
faturamento para, desta forma, poderem privar das benesses que o dinheiro pode
comprar. Os jovens membros desses “comandos” são unânimes em afirmar que as
quadrilhas trazem segurança suplementar aos seus membros. Realmente elas lhes
proporcionam acompanhamento jurídico e proteção quando estão presos. É, pois, a
partir dessa lógica de que o dinheiro compra uma boa defesa e de que as armas
oferecem poder, prestígio e proteção, que o cometimento de mais crimes
recrudesce, a fim de que se possa sempre dispor de muito dinheiro e muitas
armas para manter forte a sua organização e relativamente protegidos os seus
integrantes. O poder do dinheiro, a força das armas, o silêncio a que são
reduzidas eventuais testemunhas, são algumas maneiras de se escapar à prisão ou
de tornar uma condenação algo improvável.
Mesmo assim, o imponderável pode
frustrar esta lógica: nada obsta que um traficante possa ser torturado e sofra
uma extorsão de um dinheiro que ele não tenha. Ele pode ter os seus bens,
adquiridos com o lucro do tráfico, tomados pelos policiais, e ainda assim ser
preso por esses mesmos policiais, num aumento de suas apostas no jogo da
corrupção; pode ainda ser preso por policiais honestos e ter seus bens
apreendidos; pode também ser acusado de crimes que não cometeu, forma de
“solucionar” algumas investigações policiais, adequando-se às novas metas de
eficiência velhas práticas de violência e corrupção.
De todo esse caos de violência e
corrupção surgiu, no Rio de Janeiro, uma organização complexa e diversificada,
muito bem armada, na qual as questões pessoais e comerciais passaram a ser
resolvidas pela força das armas de fogo e na qual se criou um culto à
virilidade (o “sujeito homem”) e se banalizaram as exibições de poder pela via
da violência. Este fenômeno criou as condições que atraíram parte da juventude
pobre para essa guerra intestina e sem quartel entre os traficantes, ou entre
estes e o poder público, o qual, pela sua ausência e ineficiência, sempre foi
desprezado. Mas esta guerra permaneceu restrita às áreas carentes da cidade.
Diferentemente das máfias ítalo-americanas, a nova organização do tráfico no
Rio de Janeiro nunca se baseou nos liames estáveis de lealdade comuns entre
pessoas relacionadas por parentesco real ou ritual. Se havia um laço desse
gênero entre os “bicheiros”, o tráfico de drogas fez com que qualquer elo de
lealdade pessoal, vertical ou horizontal, fosse quebrado, da mesma forma como
ocorreu na máfia italiana, facilitando a sua desagregação.
Os conflitos no negócio das drogas, tanto para acertar contas como por
distribuição de poder e riqueza, são muito mais frequentes e sangrentos do que
as antigas guerras entre banqueiros de bicho, que eram raras e tinham alvos
específicos. O comércio das drogas tornou-se hoje, portanto, sinônimo de guerra
em muitas partes do país. No Rio de Janeiro este negócio, mesmo não tendo uma
clara coordenação geral hierarquizada, possui um arranjo horizontal eficaz: por
exemplo, se há falta de drogas ou armas numa favela, esta pode obtê-las das
favelas aliadas, isto é, controladas pelo mesmo comando. Esses bandos conciliam
seus arranjos logísticos por uma rede geograficamente definida, que engloba
pontos centrais de difusão e outros que se estabelecem com base na
reciprocidade horizontal.
No Rio de Janeiro, o contrabando de
armas é facilitado por causa dos portos e dos vários aeroportos ali existentes,
além dos arsenais militares importantes que se encontram instalados no
município; uma sucessão de furtos tem ocorrido nesses arsenais, cujo controle
de estoque não é dos mais eficazes. Desta forma, o armamento à disposição
dessas quadrilhas é de alto poder de fogo.
De
posse desse sofisticado arsenal, as diferentes facções de traficantes de drogas
se confrontam violentamente pelo controle dos territórios que servem de base
para os seus negócios, proibindo até que meros moradores de áreas dominadas por
rivais cruzem os limites de seus perímetros, mesmo para visitar amigos e
parentes, numa situação semelhante a que é imposta numa zona de guerra como a
Faixa de Gaza e a Cisjordânia. E é verdadeiramente uma guerra interminável;
nesse conflito, não apenas os membros das quadrilhas, mas também os jovens que
habitam as mesmas favelas de determinado comando, ou favelas aliadas, se vêm
obrigados a prestar auxílio a cada vez que atacam ou são atacados por comandos
adversários. Os “soldados” formam então o “bonde” que responderá ao ataque do
outro “bonde”, formado de igual maneira. É por esse motivo que os vizinhos são
proibidos de cruzar as divisas artificiais entre as “comunidades”. Muitos
jovens foram mortos simplesmente por terem cruzado tais fronteiras, passando
para um setor onde o tráfico era controlado por um “comando” diferente daquele
de onde as infortunadas vítimas vinham, mesmo que fosse para trabalhar ou para
se divertir nos bailes, agora também controlados pelo tráfico.
Quando os jovens das favelas são
chamados a integrar as quadrilhas pelos donos do tráfico, a preferência é
sempre por aqueles que prestaram serviço militar ou foram desligados das forças
armadas em sua política de contenção de despesas. Esses indivíduos são o que se
poderia chamar de mão-de-obra altamente qualificada para as atividades do
bando, já que possuem treinamento militar. Mesmo quando não são membros
efetivos dos bandos, tornam-se prestadores de serviços, tais como os de
armeiros, consertando, desmontando e limpando o arsenal sofisticado das
quadrilhas, os de instrutores, ensinando os “soldados” a utilizarem com
eficiência as armas de guerra e ministrando instruções táticas sobre a melhor
forma de planejar invasões aos redutos inimigos ou como montar um bom aparato
defensivo contra incursões policiais ou de outras quadrilhas. Tais propostas
dos traficantes são irrecusáveis, uma vez que a recusa fatalmente redundará, no
mínimo, na expulsão da favela e, na maior parte das vezes, na execução sumária
daquele que se recusou a colaborar com o “dono do morro”.
Em razão disso, pode-se afirmar que
os jovens não morrem apenas por causa das guerras pelo controle dos pontos de
venda de drogas, mas também por qualquer outro motivo que eventualmente ameace
o status ou a arrogância de jovens
tentando fazer valer a sua virilidade. E aqui a masculinidade não se origina na
gentileza, na educação ou em outras disposições civilizadas: aqui o que vale é
a ferocidade e a capacidade de destruir o adversário. O indivíduo é respeitado
pelo possível mal que possa causar: assim, na verdade a questão não é de
respeito, mas de terror. São esses jovens que cedem ao canto de sereia do
tráfico de drogas e cujos corpos têm aumentado os índices de homicídios por
todo o país; são deles as estatísticas e as práticas violentas que obstam uma
melhor qualidade de vida nas comunidades mais carentes de nossas cidades.
À Guisa de Conclusão
É a sociedade brasileira realmente
prisioneira das drogas? Em certa medida, pode-se dizer que sim. Afinal, parte
considerável da população do país está envolvida, direta ou indiretamente, com
a venda e/ou consumo de substâncias entorpecentes ilícitas e que causam
dependência física ou psíquica:são os consumidores das drogas e seus familiares
e amigos atingidos pelas consequências do vício; são os narcotraficantes de
todos os níveis (desde vendedores no varejo até os financiadores do tráfico) e
a projeção de suas atividades violentas sobre o corpo social; são os
investimentos públicos (mesmo malbaratados), tanto na área da saúde como na
esfera repressiva e punitiva.Os dados estatísticos precisam ser observados
atentamente. Segundo as Nações Unidas, em pesquisa realizada em 2010 tomando
como base pessoas na faixa etária compreendida entre 15 e 64 anos, cerca de um
milhão de brasileiros consomem cocaína, o que é algo em torno de 0,7% da
população; os consumidores de maconha no Brasil estão em torno de 2,6%; o uso
de opiáceos vitima cerca de 0,5% da massa demográfica referida; anfetaminas têm
consumo de 0,5% e ecstasy de 0,2%.Essa
pesquisa não considerou o consumo de crack,
que cresce de forma alarmante.
Mas, muito além de um aprisionamento
às drogas, a sociedade brasileira encontra-se historicamente refém do seu
próprio sistema. E quando aqui se menciona um sistema, não se está fazendo
alusão a algo difuso e incorpóreo; o que se entende por sistema, neste
contexto, tem nome e sobrenome: são os mecanismos que estabeleceram a formação
social, política e econômica brasileira, as interações internacionais que
influem no comportamento nacional e os mecanismos de preservação e continuidade
do establishment.Por um lado se tem a
volatilidade do capital financeiro internacional que se presta a inversões de
cunho legal para mascarar atividades ilegais, as redes bancárias que dão seu
consentimento para entesourar em contas secretas os frutos dos tráficos, dos
“caixas 2” e da corrupção dos altos escalões de governos, e uma cultura de
consumo de estilo que induz e conduz a massa de indivíduos a determinados
comportamentos. Por outro lado, no plano doméstico, se tem o tráfico de
influências na política, as contribuições de campanhas eleitorais oriundas,
direta ou indiretamente, de atividades ilícitas e que continuam como praxe
desse processo, a corrupção que emperra o aparelho do Estado brasileiro e a
falta de políticas públicas adequadas ao interesse coletivo. Somem-se a isso as
ações de governo orientadas para a defesa dos interesses das elites e dos
“donos” do Estado, e está aí expresso, de forma simplificada, no que se
constitui esse sistema.
O dito sistema, formado por essas
engrenagens, trabalha pela sua permanência, para a manutenção da hegemonia do
seu bloco e, portanto, não se deve esperar dele ações que não as de natureza
instrumental, tomadas com o objetivo de fazê-lo funcionar melhor e aumentar
seus ganhos, de dinheiro e poder. No que tange especificamente ao tráfico de
drogas e à segurança pública, as ações empreendidas pelo Estado são tímidas e
discriminatórias: criminaliza-se a pobreza, como se as quadrilhas das favelas
que comercializam as drogas no varejo fossem o ponto nevrálgico dessa questão.
Não são. Não se discute que elas devam ser combatidas e sofrer os rigores da
lei. Também. Mas falta combater os investidores, os políticos que se locupletam
das contribuições provenientes dos lucros do tráfico de drogas, os esquemas que
defraudam o país e desviam verbas que poderiam ser utilizadas em políticas
sociais, em educação, em saúde pública. Falta aplicar a fria letra da lei a
empresários que sonegam impostos, que acobertam e participam de ações ilícitas
que alimentam a indústria do crime.
Sem isso, de pouca valia serão, por exemplo, as UPPs
no Rio de Janeiro, um projeto que tem qualidades desde que não fique atrelado
apenas às demandas da Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas em 2016. As UPPs,
um embrião da “polícia comunitária”, incluiem estratégias de aproximação entre
as forças policiais e as classes sociais tradicionalmente condicionadas a
sentir-se ameaçadas por ela. Ao invés de se manter numa posição apenas
repressora, no lugar ter como missão manter a população do gueto no gueto, essa
aproximação da Polícia poderá servir para promover a cidadania ao integrar
comunidades abandonadas, na verdade nunca assumidas, como parte do Estado. Será
preciso que a população seja educada para conviver com os agentes do Estado;
mas esses mesmos agentes, no Brasil, mais do que nunca precisam ser também
educados para a realização do bem comum a que se destina o dinheiro público. É
preciso acabar com a ideia de que política de segurança pública se faz com
policiamento ostensivo nas ruas: como afirmou o Professor Oswaldo Munteal em
entrevista ao boletim semanal “UERJ em Dia” nº 576 de 20-26/06/2011, isso “não
é segurança, é estado de exceção”. Política de segurança pública deve ser
multidisciplinar, ou seja, articular ações de natureza policial a outras que
digam respeito à saúde, à educação, à inclusão social, ao desenvolvimento de
capacidades. Portanto, é muito mais esse sistema de poder perverso que se
constitui numa prisão, do que o tráfico e consumo de drogas, consequência dos
interesses daquele. A questão é: quando a sociedade acordará para se libertar
desse aprisionamento? Até quando a sociedade aceitará com submissão ser
cúmplicedesse jugo? Quando será possível ver políticas públicas serem aplicadas
com eficácia para a solução desses problemas?
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Victor Tempone
Mestre em História Política (UERJ), Especialista em Relações Internacionais (UERJ) e Professor e Pesquisador na UERJ.
Universidade Estadual do Rio de Janeiro