terça-feira, 2 de março de 2010

OS DOIS CONFLITOS MUNDIAIS DO SÉCULO XX: AS AMARGAS MEMÓRIAS DA GUERRA

Não é a cegueira ou a ignorância que levam à ruína os homens e os Estados. Não demora muito que descubram até onde os levará o caminho escolhido. Mas há neles um impulso, que sua natureza favorece e o hábito reforça, ao qual não podem resistir, e que continua a impeli-los enquanto lhes resta a mínima energia. Aquele que consegue dominar-se é um ser superior. A maioria vê diante dos olhos a ruína, e avança em sua direção.
Leopold von Ranke

Longa, dolorosa, mortífera, a I Grande Guerra viu matarem-se entre si milhões de homens que, ainda na véspera, juravam “guerra à guerra”. Eram irmãos de armas daqueles a quem acusavam de serem militaristas, patrioteiros, belicistas; e igualmente milhões de outros que fizeram a guerra por dever ou ainda sem saberem muito bem o porquê.
Após 1918, transformados em antigos combatentes, nem uns nem outros puseram em dúvida a legitimidade do seu sacrifício: haviam combatido pela defesa da pátria e a guerra que tinham feito era uma “guerra justa”. Durante cinquenta anos repetiram esta afirmação. Ainda no decurso das próprias hostilidades, todavia, uma dúvida nascera no espírito de alguns deles: teria algum sentido a continuação da guerra? O terrível massacre seria verdadeiramente necessário? Os núcleos dirigentes garantiam que sim, mas estariam eles sendo sinceros?
Em 1914, os convocados não fizeram perguntas; todos partiram e, quando desfilaram, os rostos deixavam transparecer o seu estado de espírito: estavam radiantes. Na verdade, a imagem é enganadora e uma análise mais detida certamente deixaria transparecer a mágoa de um pai, de um noivo ou de um marido; mas isso era passageiro, em flagrante contraste com 1939 quando, exceto na Alemanha, o rosto dos mobilizados exprime desespero e consternação.
Em 1918, com o regresso do soldado, a reconstrução do lar destruído, a reconversão à vida civil, os dramas e as alegrias que os acompanham, homens e povos se interrogaram. Uma vez perdidas as ilusões, o problema da sua existência passada e do seu futuro colocava-se perante eles.
Uma vez esquecidas as ilusões dos primeiros anos da guerra, os sobreviventes foram os atores de um drama sem precedentes. Quantos se interrogaram sobre o papel que puderam desempenhar ou sobre o significado geral do conflito?
Para os imigrados recentes, para os judeus, o batismo de fogo fizera deles cidadãos; ninguém mais poderia pôr isso em dúvida. Mas que vantagem teria trazido a guerra aos demais? De regresso aos seus lares e passada a alegria pelo fim do pesadelo, conheceram a amargura de uma difícil reconversão. Hábil nos elogios e nas honrarias com a pompa das cerimônias que os ligava à ordem governamental, o Estado não assegurava aos antigos combatentes os direitos que tinham sobre a nação. Por não terem organizado o seu regresso, estes se encontravam muitas vezes reduzidos ao desemprego, à mendicidade. Promessas e discursos tornavam mais odioso este desinteresse real dos dirigentes da retaguarda relativamente a todos estes infelizes. As antigas feridas, mal cicatrizadas, reabriram-se: a recordação amarga das licenças, a consciência da injustiça, o ressentimento contra os aproveitadores da guerra, a retaguarda, os deputados, todos eram cúmplices. Por reação, a solidariedade que reinara nas trincheiras parecia idílica: aí se ignoravam as classes sociais, os privilégios; este outro mito estava em vias de nascer, um mito que os filmes e os romances iriam ilustrar por mais de vinte anos. Sem dúvida, o pós-guerra conheceu outras cóleras, especialmente a dos trabalhadores que perpetuavam a tradição revolucionária do século precedente: mas os contestatários inscritos no desemprego que desfilavam em Londres, com o boné na cabeça, iriam alargar mais tarde o campo do Partido Trabalhista ou iriam reforçar as tropas do “fascista” Mosley(1)?
Além-Mancha, como em outros locais, tinham sido os únicos a sacrificarem-se pela pátria e a identificarem-se com ela. É fato que, sem se contradizerem, não podiam dessolidarizarem-se dos políticos que não cessavam de glorificá-los e, na França, como em outros países, elegeram em 1919 os mesmos dirigentes de outrora. Todos votavam desprezo aos vermelhos e a todos aqueles que repetiam, tais como a vanguarda surrealista, que os antigos combatentes tinham desempenhado o papel de parvos, simples marionetes movidas pelo Capital e pelos comerciantes de canhões. Esta forma de ver o problema humilhava-os e, por reação, levava-os a cerrar ainda mais as suas fileiras, a legitimar o seu sacrifício e a adotar posições nacionalistas. Levava-os algumas vezes a ressuscitar a ideia outrora expressa por alguns chefes militares que queriam militarizar toda a nação, para lhes ensinar, manu militari, o sentido do dever.
O rancor das principais associações de antigos combatentes manifestou-se assim contra os da retaguarda, os aproveitadores da guerra, os que arranjaram pretextos para evitar o serviço militar, os dirigentes políticos que se submetiam à paz e aqueles membros de sindicatos que tinham a “falta de pudor” de reivindicar tempos livres enquanto eles próprios, 24 horas por dia, arriscaram a sua vida pelo país.
O seu ressentimento exprimia-se igualmente contra as mulheres, aproveitadoras da guerra à sua maneira, uma vez que a partida dos homens permitira a sua emancipação. Para a maior parte, elas tinham escapado ao risco de continuar solteiras, casando-se quer com estrangeiros que não estavam mobilizados, quer com homens quatro a cinco anos mais jovens do que aqueles com quem normalmente teriam casado se não tivessem morrido na guerra. Reduzida assim a diferença de idade entre os cônjuges, o equilíbrio do casal do pós-guerra já não é o de antes de 1914. A família tradicional dissolve-se, como se dissociara o sentimento patriótico em razão do sucesso da revolução e da cruzada contra a Rússia vermelha. O imperativo da moral do trabalho tinha-se igualmente enfraquecido. Assim, não é fortuito que, tendo conquistado o poder na França depois de 1940, os antigos combatentes tenham adotado o lema “Família, Trabalho e Pátria”.
Antes, o Estado e as classes dirigentes limitavam a sua atenção às revoltas vindas de baixo. Estas constituíam ameaças permanentes e maiores do que outrora, porque o sucesso da Revolução Russa fortalecera as correntes revolucionárias de todos os países. Muitas destas forças consideravam que a pátria se encontrava a leste. Mas havia também descontentes de outro tipo: aqueles que a guerra arruinara, especialmente proprietários rurais e pequeno-burgueses, e aqueles nos quais se cruzavam o ideal revolucionário da tradição socialista, o culto da terra e o gosto pela violência nascidos na lama das trincheiras. À imitação dos fascistas italianos, tornaram-se em breve os arautos de uma revolta que, pelo seu estilo, ressuscitava os ritos guerreiros aos quais haviam ficado muito ligados. Proclamando-se hostil à plutocracia internacional, renovadora, conservadora e anti-socialista, a sua ação apresentou-se como a luta por uma nova cultura. O seu triunfo violento na Itália, os seus progressos na Alemanha e na Europa Central, fascinaram uma parte dos dirigentes e das classes médias, aqueles que a guerra e o pós-guerra haviam enfraquecido, jovens, ex-combatentes, a quem a experiência comunista inquietava e aterrorizava.
As classes dirigentes, todavia, pensaram precipitadamente que esta atmosfera de mal-estar, a desunião dos vencedores, a difícil aplicação do Tratado de Versalhes, as crises ligadas à reconversão econômica e social, constituíam fenômenos passageiros que a sociedade capitalista saberia absorver tal como soubera desacreditar o socialismo. Efetivamente, o bar americano, o tango, o charleston já ocupavam o lugar da madrinha de guerra, do desfile militar e de La Madelon(2). Os progressos da técnica, a sua utilização pacífica, criavam novas distrações que, com o espetáculo do desporto, do cinema, do music hall e da promessa de férias, forneciam à sociedade a evasão que ela procurava. Franceses, alemães e ingleses, que têm a impressão de acordar de um pesadelo, gostam de se inebriar: em 1920, em Paris, há mais gente para festejar a Páscoa do que para comemorar a vitória. Todavia, na Alemanha, na Itália, e em breve na URSS, espetáculos de ginástica de impressionante dimensão já revelam secretas aspirações a uma “nova ordem”. O porvir não será radioso.
Em 1966, em Verdun, cinquenta anos após a batalha ali travada, os ex-combatentes franceses e alemães reuniram-se para comemorar o seu sacrifício. Após um momento de hesitação, apertaram as mãos e depois abraçaram-se, chorando, irmãos reencontrados de uma tragédia que a História raramente conheceu.
Será possível imaginar, sessenta anos após a batalha de Varsóvia, uma reunião de poloneses e judeus, alemães e russos, para recordar este outro pesadelo?
Reside aqui uma das diferenças entre as duas guerras mundiais, representada também numa réplica, depois suprimida, de A Grande Ilusão(3): na versão de 1937, um prisioneiro francês, ao ouvir os alemães desfilarem, comentava: “O barulho dos passos é o mesmo em todos os exércitos do mundo”. Em 1946, preocupado em não desagradar a seu público, Jean Renoir suprimia a frase; depois de quatro anos de ocupação nazista, não se podia comparar os passos dos libertadores aos dos algozes.
Por isso, as duas guerras não deixaram o mesmo vestígio, a mesma recordação...
Ao considerar o ponto de partida das duas guerras, contudo, poderíamos crer num balanço inverso, pois em 1914 as sociedades europeias julgavam saber o porquê de estarem guerreando: o inimigo nacional intentava contra a própria existência da pátria. Já em 1939 esse inimigo não estava tão claramente definido: para os franceses, seria o nazista ou o bolchevique, para os soviéticos, o alemão ou o anglo-saxônico, e para os italianos, adversário ou aliado? Ora, no final da guerra, a relação inverteu-se: tanto para o Ocidente como para a URSS, o nazista tornou-se o inimigo de todos e para todos o combate ganhou um sentido, enquanto que em 1918 os combatentes tiveram a impressão de terem sido vítimas de um logro: o inimigo diante deles, na trincheira, tornou-se uma espécie de irmão, e o sentimento de ódio transferiu-se para a retaguarda, para os oportunistas e os não mobilizados que “ficaram na boa vida”. Este ressentimento encobre o fascismo e o comunismo, enquanto que em 1945 não há sequer diferença entre os combatentes e os da retaguarda. Estes, ou sofreram tanto quanto os outros, ou os civis lutaram na Resistência. Tenta-se, pois, reviver em conjunto, enquanto que em 1918, passada a euforia, ex-combatentes e não-combatentes difamam-se mutuamente.
Acontece com a recordação da guerra o mesmo que à própria guerra: varia de acordo com as memórias. E a memória dos chefes e dirigentes políticos não é necessariamente a dos combatentes ou daqueles que ficaram na retaguarda; a memória dos vencedores também não é a dos vencidos. Há zonas da memória que sobrevivem, outras que finalmente renascem nos momentos mais inesperados. Assim, a recordação dos massacres da Armênia, em 1915, renasce bruscamente no início dos anos sessenta - depois de os alemães haverem admitido os seus crimes contra os judeus, os armênios exigiram o mesmo do governo turco. De igual modo, os extintos Tratados de Trianon ou de Sèvres ressurgiram em ebulição a cada vez que eclodiu, nas décadas de trinta e quarenta, um conflito no Oriente Médio – a Síria tornou a pô-los em evidência, e posteriormente o Iraque. Os tratados com a Hungria e a Bulgária chocavam sob as cinzas, de 1919 às negociações de Munique, mas reavivaram-se às expensas da Romênia e reanimam-se novamente após a Europa do Leste lhes ter dado as vantagens da liberdade. No sul do Tirol, na Transilvânia, na Alsácia-Lorena, essas províncias tão disputadas, a guerra de 1914 e as suas questões permaneceram bem presentes. Em Metz, por exemplo, em setembro de 1940, os alemães apagaram a inscrição do monumento aos mortos de 1914-1918, substituindo-a por outra, em alemão, dedicada àqueles que tombaram pelo Reich. Esta cerimônia foi assistida por uma multidão considerável.
A recordação desempenha também um papel de referência. O essencial da memória histórica dos dirigentes do período entre-guerras – com exceção dos bolcheviques – se embasa no arsenal de ideias e experiências de 1914-1918. Porque se trata da guerra do futuro, da defesa da nação, de solidariedades e de amizades feitas e desfeitas – de 1918 a 1945 esta referência é constante. É obsessiva em Hitler, em Pétain, nos militares de todos os calibres, exceto De Gaulle; o Plano Schliefen está tão vivo em 1940 quanto em 1914 – a operação de von Manstein através das Ardenas, a fraca defesa do maciço referem-se explicitamente a 14-18; este exemplo vale também para as relações anglo-alemãs: Hitler espera não entrar em guerra com a Grã-Bretanha durante o verão de 1940, exatamente como Guilherme II durante o verão de 1914 tivera os mesmos argumentos. Para assinar o armistício Pétain descobre as suas referências em 1918, e para não aplicar as cláusulas do armistício Hitler refere-se aos mesmos acontecimentos desse ano.
Mas referência não é memória(4). E a memória deforma à sua maneira. Seleciona o inefável, as vítimas do gás, em particular; esquece outros mortos vítimas de tifo ou de gripe, que em 1918 fez quase tantos mortos no ocidente quanto as grandes batalhas. As mortes destas vítimas foram menos nobres e delas não se fala. A política confunde-se, bem como as rivalidades entre chefes: no ocidente glorificaram-se as vítimas de Verdun, mais do que as do Somme ou de Passchendaele, e a leste esquecem-se de comemorar o sacrifício dos soldados russos mortos na guerra; mais sorte tiveram os mortos da guerra civil...
Mais do que qualquer outro país, a França comemorou a Grande Guerra – através de museus, de bibliotecas especializadas (a B.D.I.C.) e apenas a Alemanha de Weimar se lembrou de construir um museu pacifista, o Antikriegsmuseum de Berlim. Mas, em todos estes países, esta guerra alimentou o imaginário de romancistas, poetas, filósofos, cineastas. De Erich Maria Remarque(5) a Henri Barbusse(6), de Jules Romain(7) a Bertrand Russel(8), descreveu-se o horror, tentou-se analisar a natureza da guerra, enquanto que para outros, como D. H. Lawrence(9) ou Marinetti(10), o fim da guerra significou o retorno ao antigo sistema, ao tédio e à frustração. Deste ponto de vista, é exemplar a reflexão de Bertrand Russel, que crê que o pensamento ocidental antes de 1914 havia superestimado o papel da razão e subestimado o da pulsão. Em surdina, o antigo antagonismo entre revolucionários faz-se substituir pelo antagonismo que se desenvolve entre belicistas e pacifistas. E, em 1939, abafa-o.
Esta clivagem é sem dúvida a principal herança que a guerra legou à história – pelo menos até 1940.
O horror da guerra e o seu absurdo constituem também o tema favorito de escritores e cineastas. O grito de Péguy(11), “felizes os que morreram em tão justa guerra”, foi certamente ouvido, mas foi ofuscado pelos corifeus em favor de um retorno a uma humanidade pacífica.
A crueldade da guerra é, evidentemente, o primeiro tema da recordação; esta conforma-se com uma nostalgia da fraternidade dos combatentes, como em Les Croix de Bois, de Raymond Bernard(12) (1932), em Berge in Flammen,(13) etc. Mas a amargura destes combatentes, a desenvoltura da retaguarda, o comportamento das mulheres – por vezes adúlteras – constituem a principal obsessão da memória do pós-guerra. De Westfront, de Pabst(14), a Le Diable au Corps, de Radiguet(15), adaptado posteriormente por Autant-Lara(16), a mesma idéia percorre todo um conjunto de filmes e romances: é típico o antifeminismo de La Grande Illusion, mas encontramos o mesmo traço algures durante todo o período entre as duas guerras. Foi sem dúvida Abel Gance(17), com J’accuse e depois Paradis Perdu, quem melhor soube exprimir mais intensamente o drama de todas estas existências aniquiladas.
Raramente se questionou, após 1945, a legitimidade da II Guerra Mundial. Este ato de questionar alimenta, pelo contrário, aqueles que evocam o primeiro conflito mundial – mesmo após o fim do segundo. E procura mostrar, antes de mais nada, que os combatentes dos dois campos são, no fundo, irmãos – alemães e russos em Okraina(18), franceses e alemães em La Grande Illusion: o seu combate era absurdo, e ilusória a noção de que os povos queriam realmente destruir-se. O segundo pós-guerra leva mais longe a análise e retoma a ideia de Nada de Novo no Front Ocidental: é a ordem militar, são as instituições que produzem a morte, umas vezes pelo que instilam de rivalidades, de invejas, de irresponsabilidade (Paths of Glory, Uomini Contro)(19), outras porque transformam os homens considerados livres em escravos, ao fazer executar inocentes (King and Country)(20).
Todos estes artistas souberam denunciar os tabus, mostrar o lado obscuro da guerra. Alimentaram a consciência dos homens de boa vontade, mas não ajudaram a elucidar como é que esses mesmos homens puderam tornar-se fascistas, nazistas – ou stalinistas.
A memória e o imaginário da II Guerra Mundial se desprende das recordações da Grande Guerra. Ou o faz de forma mais realista. Mesmo antes de seu efetivo início, já desde a Guerra Civil Espanhola, o fascismo internacional lhe havia conferido uma característica de cruzada ideológica, que a entrada na liça da URSS não fez mais do que acentuar.
É, portanto, durante a libertação dos países ocupados pela Alemanha nazista que se desvela todo o sentido de sua ação: as carnificinas, os campos de concentração e o genocídio tornar-se-iam instituições de um mundo dominado ou inspirado pelos nazistas. Assim, a guerra seria o meio de se livrar a civilização da barbárie que o progresso da ciência não fez mais do que lhe agravar a crueldade. Foi por isso que democratas herdeiros do século das luzes, cristãos imbuídos dos ensinamentos do Evangelho, marxistas que lutavam para pôr termo à exploração do homem pelo homem, malgrado suas profundas divergências e suas lutas passadas, encontravam-se reunidos do mesmo lado da barricada, numa “estranha aliança” nas resistências clandestinas. Lutaram em conjunto para que não se perenizasse o reino da violência, do racismo, da desigualdade política e social, do niilismo destruidor, para que a humanidade saísse de uma longa noite do espírito.
A comoção no mundo foi tão profunda, os esforços dos beligerantes tão colossais que, ao término das operações militares, o imaginário dominante é o de uma gigantesca desordem, um misto de complexidades, confrontações e incertezas. Ninguém poderia dizer em que medida e em qual momento serão reparadas as imensas devastações materiais e morais originadas pelo conflito; ninguém ousaria afirmar que o acordo dos vencedores e o arco-íris das frágeis instituições internacionais que lhe dão suporte garantirão que tais fatos não se repitam.
O que é certo, no imaginário coletivo, é que a Europa Ocidental e Central, empobrecida e exangue, vê se acentuar o seu declínio; que a Ásia está em plena mutação; que a África, sobretudo o mundo árabe, e a América do Sul despertam e começam a agitar-se; que os impérios coloniais estão a ponto de extinguir-se. A conjunção de vastas extensões, de populações numerosas e de um potencial econômico e militar sem precedentes, faz surgir do caos dois super-estados, os Estados Unidos e a União Soviética. Ao poder financeiro do primeiro faz contraponto a doutrina ideológica do segundo. Nestes dois gigantes tudo aparentemente se opõe, mas na verdade há profundas semelhanças entre eles, marcadas pelo projeto de política internacional de estabelecer uma hegemonia global e pela esperança comum a ambos num futuro baseado nas inovações da ciência e da tecnologia; mas a similitude de projeto político internacional (que exatamente por sua semelhança os contrapõem) e as suas dessemelhanças mais visíveis os conduzem ao instante do afastamento e da confrontação.
O declínio da Europa Ocidental é também o da democracia liberal; por toda parte ela se vê organizada por um sistema de dirigismo econômico que dá ao Estado poderes cada vez mais extensos. Naquele momento, a vitória da URSS é também a do comunismo internacional, que não somente está instalado dentro da Europa Central e Oriental, mas também aspira e está prestes a obter o poder em diversos países – sobretudo a China, a França e a Itália. Por instantes, todavia, há a face do stalinismo, cujo totalitarismo assusta mais do que seduz. Quanto aos Estados Unidos, sua riqueza sem equivalentes anuncia de forma altissonante que o capitalismo liberal é próspero; não obstante, em 1942, Burnham(21) predissera que ele transformar-se-ia em capitalismo de Estado, no qual a verdadeira autoridade pertenceria aos técnicos da economia e da administração empresarial – é a “era dos tecnocratas” que se anuncia.
A alteração mais visível na existência humana do pós-guerra jaz na diminuição das distâncias em razão do aumento da tecnologia ligada aos transportes e à comunicação, tendo como resultado consequente o encurtamento do planeta. Mas, contraditoriamente, à medida que os povos melhor se conhecem, tornam-se vizinhos e se ligam dentro dessa tessitura de mudanças, eles parecem chafurdar deliberadamente em um nacionalismo sobranceiro no qual se comprazem em afirmar uma originalidade que os isola. “O mundo das contradições” - é assim, parece, que se poderia definir o legado deste segundo conflito mundial: o poder de produzir tornou-se ilimitado, mas jamais os pobres, povos ou indivíduos, estiveram tão distanciados dos ricos; o ritmo dos eventos se acelerou e a existência dos povos evoluídos melhora numa cadência que os faz perder o fôlego, mas continentes inteiros estão mergulhados num imobilismo e numa letargia de tempos imemoriais; o progresso do conhecimento pode purificar as inteligências, generalizar critérios e opiniões, ampliar a tolerância, mas a mídia e a propaganda ideológica são igualmente capazes de produzir uma massa de bobagens, envenenar as mentes, transformar os problemas mais simples em situações complexas e insolúveis; em alguns países encontram-se os meios de vencer as doenças corporais e sociais, mas em outros, é ainda a fome – a fome que mata – que segue soberana, coadjuvada pela ignorância, pela servidão, pela miséria psicológica e pela exploração dos fracos. Apesar da derrota nazista, o darwinismo social e político que lhes servia de base de ação parece ter feito escola e triunfado.
A panaceia para todos estes males, todavia, não é ilusória, já que a ciência a pode fornecer, fato demonstrado pelos progressos científicos que se configuram como rápidos e ilimitados. Na verdade, a ciência proporciona, para o bem ou para o mal, as mesmas oportunidades de total realização graças, à época, à sua mais promissora e temível descoberta: a energia nuclear.
Assim, impregna-se na mente dos povos que, se por um lado abriam-se perspectivas grandiosas com tais descobertas – irrigação de desertos, fornecimento de energia a preços mais baixos, a medicina nuclear, etc. – por outro lado o sol de Hiroshima traz o anúncio dos tempos do apocalipse; com ele a humanidade passa a possuir, se não souber controlar suas paixões, seus instintos e seus apetites, o meio de resolver suas contradições pelo seu total desaparecimento. Com a “Bomba”, a Terra se tornou mortal, possuindo o Homem o poder de ser o seu assassino.


  1. Sir Oswald Ernald Mosley (1896 – 1980), político britânico de origem irlandesa, fundador da União Britânica de Fascistas.

  2. Canção de autoria de Camille Robert e Louis Bousquet que se tornou muito popular entre os soldados franceses durante a 1ª Guerra Mundial.

  3. Filme dirigido por Jean Renoir considerado pela crítica especializada com um dos mais importantes filmes franceses de todos os tempos. Inspirador de inúmeras obras, fala sobre a Primeira Guerra Mundial numa época em que ela não era conhecida como tal – 1937 – e que a sombra de Hitler já começava amedrontar o mundo. O filme conta a história de um grupo de soldados franceses presos em um campo de prisioneiros na Alemanha em 1916, de suas análises sobre a guerra e do comportamento humano no meio dela. Várias cenas não foram exibidas até o final da década de 50, como a sequência em que dois fugitivos – um judeu e um francês – durante sua fuga vão hospedar-se com uma mulher alemã e esta apaixona-se por um deles. Há uma cena, também muito significativa, na qual os prisioneiros franceses cantam a Marselhesa em pleno território germânico (cena que, posteriormente, se repetiria de forma alegórica em Casablanca). O filme é recheado desses pequenos grandes momentos e no todo ele encanta e se coloca na história cinematográfica por tudo isso. Seus personagens são complexos – tanto os prisioneiros como os alemães. Os diálogos entre estes os prisioneiros franceses são os melhores, e daí surgem grandes momentos que mostram a mensagem anti-belicista do filme. Esses momentos, que ocorrem principalmente entre o capitão Rauffenstein (interpretado pelo ator Ericch von Stroheim) e os prisioneiros franceses, funcionam como um manifesto a favor da amizade entre os seres humanos: mesmo que o capitão tenha o dever de manter os franceses como prisioneiros, ele reconhece que o faz por obrigação e que não é a favor da guerra. Uma mensagem do diretor para um público temeroso, numa época em que a sombra de uma nova guerra – muito maior do que aquela primeira – estava pairando no ar.

  4. A memória historiográfica contém em si naturalmente vários riscos. Na Alemanha, por exemplo, perpetua-se um debate sobre as origens da guerra de 1914-1918 que há muito se extinguiu em outros países. Com efeito, trata-se de uma interrogação sobre a natureza e as origens do nazismo; quanto mais se prova as ambições ilimitadas de Guilherme II, mais se dissolve a especificidade do nazismo, pelo menos na sua vontade hegemônica.

  5. Erich Maria Remarque, pseudônimo de Erick Paul Remark, nasceu em Osnabrück, Alemanha, em 1898, vindo a falecer em Locarno, Suíça, em 1970. Nas céu no seio de uma família de trabalhadores católicos alemães. Aos 18 anos de idade partiu para as trincheiras da 1ª Guerra Mundial, onde foi ferido várias vezes. Depois da guerra mudou o seu nome para Remarque e teve diversos empregos, incluindo os de bibliotecário, professor e editor. Em 1929 Remarque publicou o seu trabalho mais famoso, Nada de Novo no Front Ocidental, com o pseudônimo de Erich Maria Remarque (mudando o nome do meio para homenagear sua mãe). Escreveu mais alguns livros parecidos, numa linguagem simples e emotiva que descrevia a guerra e o pós-guerra. Em 1933, os nazistas baniram e queimaram os seus livros e a propaganda do partido afirmava que ele era descendente de judeus franceses e que o seu verdadeiro nome era Kramer (o seu nome original lido de trás para frente). Ele mudou-se para a Suíça em 1931 e em 1939 emigrou para os Estados Unidos com a sua primeira esposa, Ilsa Jeanne Zamboui, com quem se casou e divorciou duas vezes. Tornaram-se cidadãos americanos em 1947. Por fim casou-se com a atriz Paulette Goddard em 1958, com quem viveu até a sua morte em 1970.

  6. Escritor e romancista francês, Henri Barbusse nasceu em Asnières, em 1873 e faleceu em Moscou em 1931. O seu romance Le Feu, de 1916, obteve êxito mundial. Mais tarde tornou-se comunista, indo viver na União Soviétca.

  7. Escritor e teatrólogo francês, Jules Romain (1885-1972) era o pseudônimo de Louis Farigoule. Brilhante estudioso de filosofia, tornou-se conhecido como o expoente do unanimismo, uma teoria literária que propunha e espírito e a personalidade coletivas. Sua principal obra foi o ciclo de romances Homens de Boa Vontade (27 vols. 1932-1947), que nos fornece um intrincada e panorâmica visão da vida francesa de 1908 a 1933. Escreveu também peças de teatro, consideradas obras primas do teatro francês, dentre as quais se destacam Cromedeyre-le-Vieil (1920) e Le Trionphe de la Médicine.

  8. Bertrand Arthur William Russell foi um dos mais influentes matemáticos, filósofos e lógicos do século XX. Importante político liberal, ativista e um popularizador da filosofia, foi respeitado por milhões de pessoas como uma espécie de profeta da vida racional e da criatividade. A sua posição em vários temas foi muito controvertida. Nascido em 1872, no auge do poderio econômico e político do Reino Unido, faleceu em 1970 vitimado por uma gripe, quando o império tinha se desmoronado e o seu poder drenado por duas guerras vitoriosas mas debilitantes. Até a sua morte, sua voz deteve sempre autoridade moral, uma vez que ele foi um crítico influente das armas nucleares e da guerra norte-americana no Vietnã. Foi agraciado, em 1950, com o Prêmio Nobel de Literatura.

  9. David Herbert Lawrence (1885-1930) foi um controvertido e prolífico escritor modernista inglês conhecido por seus romances, poemas e livros de viagens. A sua obra aborda temas considerados polêmicos no início do século XX, como a sexualidade e as relações humanas por vezes com características destrutivas e estende-se praticamente a todos os gêneros literários. Em conjunto, sua obra expõe uma alargada reflexão sobre os efeitos desumanizantes da modernidade e da industrialização. Os temas que Lawrence abordou tornaram sua obra importantíssima para a compreensão de uma época fortemente influenciada por Freud e Nietzsche. Além de escritor, Lawrence também era pintor e produziu muitas obras expressionistas.

  10. Fillipo Tommaso Marinetti (1876-1944), escritor, poeta e ativista político egípcio-italiano nascido em Alexandria, no Egito, foi um dos criadores do movimento estético denominado de futurismo. Estudou em Paris, Pádua e Gênova publicou suas primeiras poesias para revistas literárias, fundando depois a sua própria revista, chamada Poesia. Publicou, em 1909, no jornal francês Le Figaro, um famoso manifesto em que mostrou sua oposição às fórmulas tradicionais e acadêmicas, expondo a necessidade de abandonar as velhas fórmulas e criar um arte livre e anárquica, capaz de expressar o dinamismo e a energia da moderna sociedade industrial. Este texto é considerado a base do futurismo. Com a guerra, o futurismo se perdeu já que a maior arte dos seus adeptos foi vitimada nos campos de batalha. Alguns jovens artistas tentaram reavivá-la depois da guerra, mas sem sucesso. Marinetti radicou-se definitivamente na Itália e glorificou a I Guerra Mundial como o mais belo poema futurista. Alistou-se no exército italiano, defendeu a intervenção italiana naquela guerra e em 1919 filiou-se ao Partido Fascista. Politicamente foi um ativo militante fascista e chegou a afirmar que a ideologia fascista representava uma extensão natural das idéias futuristas. Marinetti morreu em 1944 na cidade italiana de Bellagio.

  11. Charles Péguy nasceu em Orleans em 1873. Filho de operários católicos, cursou a École Normale Supérieure, mas abandonou-a, assim como a prática do catolicismo, embora tenha sempre mantido a fé fervorosa. Em 1897 escreveu a primeira versão da peça Joana D’Arc, na qual afirma seus princípios socialistas e religiosos. Nessa época, à frente de uma livraria e editora, transformou o estabelecimento num centro de defesa ao capitão Alfred Dreyfuss, acusado injustamente de traição. Em 1900 fundou os Cahiers de la Quinzaine, periódico que exerceu grande influência na intelectualidade francesa. Ao deflagrar-se a I Guerra Mundial, Péguy foi para as trincheiras como tenente e morreu na primeira batalha do Marne, perto de Valleroy, em 5 de setembro de 1914.

  12. Raymond Bernard foi um cineasta francês nascido em Paris em 1891 e falecido em 1977. Dentre seus filmes, destacam-se Lês Misérables, uma adaptação para as telas do popular romance de Victor Hugoe Lês Croix de Bois, um filme que retrata os conflitos e angústias trazidos pela Grande Guerra.

  13. Filme alemão retratando as situações do front ocidental da Primeira Guerra Mundial, dirigido por Karl Hartl e produzido por Luis Trenker, realizado em 1931.

  14. Georg Wilhelm Pabst (1885-1967) foi um diretor de cinema austríaco. Alguns de seus mais importantes filmes referem-se à situação das mulheres na sociedade alemã, como em Joyless Street (1925), com Greta Garbo, e The Loves of Jeanne Ney (1927), estrelado por Brigitte Helm. Com Arnold Fanck foi co-diretor do filme intitulado The White Hell of Pitz Palu (1929) estrelado por Leni Riefenstahl (futura cineasta predileta de Hitler). Com o advento do cinema falado, Pabst realiza em 1930 seu primeiro filme sonoro, Westfront 1918, que retrata os dramas cotidianos do soldado alemão na frente ocidental da Grande Guerra. Foi adaptado do romance Vier Von der Infanterie de Ernst Johannsen.

  15. Reconhecido como obra prima desde a primeira edição, Le Diable au Corps teve uma edição ilustrada por Pablo Picasso, recebeu o prêmio Nouveau Monde em 1923 e foi transformado em filme três vezes, sendo mais famosa a versão dirigida por Claude Autant-Lara. A obra conta a história de uma iniciação, na forma de um amor doloroso, condenado, impossível, sempre suspenso à espera do fim da I Guerra Mundial.

  16. Claude Autant-Lara (1901-2000) foi um diretor de cinema francês educado na França e na Inglaterra. Como diretor, freqüentemente criou filmes provocantes, já que afirmava que “se um filme não tem veneno, não tem valor algum”. Participou do movimento da Nouvelle Vague, abandonando-o em 1960.

  17. Abel Gance (1889-1981) foi um renomado cineasta, produtor e editor de filmes, escritor e ator francês. Escreveu roteiros até formar seu próprio estúdio cinematográfico em 1911. A eclosão da Primeira Guerra Mundial impede a produção de Victoire de Samothrace, onde contracenaria com Sarah Bernhardt. Devido à sua frágil saúde não participou dos combates da guerra. Em 1919 obteve o reconhecimento internacional com seu filme épico de três horas J’Accuse, um libelo contra a guerra que incluiu cenas de batalhas ao longo do fim da Primeira Guerra. Gance não conseguiu fazer bem a transição do cinema mudo para o falado; embora tenha continuado a fazer filmes por muitas décadas, nunca mais acançou o sucesso e o reconhecimento que experimentou nos anos 20.

  18. Okraina, filme russo de 1933, dirigido por Boris Barnet, oferece uma sardônica visão da Rússia de 1914, abordando a guerra em curso e a Revolução que se gestava, oferecendo uma visão crítica do cotidiano de uma sociedade em crise.

  19. Paths of Glory é um filme realizado em 1957 pelo diretor Stanley Kubrick, estrelado por Kirk Douglas, Ralph Meeker e George Macready. Com uma mensagem anti-belicista retrata, de forma livre, a história real de quatro soldados franceses que, durante a I Guerra, foram executados por ordem de seu comandante, o General Georges Broulard, por se recusarem a continuar lutando. Uomini Contro, filme italiano de 1970, dirigido por Francesco Rosi, conta a história de um jovem tenente idealista do exército italiano que vai tomando consciência da inutilidade dos horrores do conflito de que participa, durante a campanha para a retomada da colina de Montefiori contra o exército austríaco.

  20. Filme inglês dirigido por Joseph Losey e estrelado por Dirk Bogarde e Tom Courtney, King and Country relata a história de um soldado, durante a I Guerra, acusado de deserção.O oficial encarregado de sua defesa na corte marcial percebe que a questão transcende à mera deserção e, a partir daí, se desvelam os dramas de consciência decorrentes da guerra.

  21. James Burnham (1905-1987), filósofo norte-americano, ingressou no movimento trotskista em 1930, tornando-se membro do Comitê Nacional e editor da revista New International. Rompeu com o trotskismo em 1937, liderando a cisão do Socialist Workers Party, adotando posições anti-comunistas.
Victor Tempone
Mestre em História Política (UERJ), Especialista em Relações Internacionais (UERJ), Professor e Pesquisador na UERJ e Professor na FAFIMA e e na rede do município de Macaé.
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Macaé / Universidade Estadual do Rio de Janeiro

3 comentários:

Unknown disse...

Caro mestre, parabéns pela aula. Realmente é um tema apaixonante, apesar de ser uma página muito triste de nossa historia, é ao mesmo tempo muito rica em detalhes, experiencias e ensinamentos.
Aos interessados, vejam a série REDESCOBRINDO A 2ª GUERRA em exibição no National Geographic Channel, simplesmente demais..

abraços

GUARA

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Sempre que falamos das guerras, nos prendemos aos fatos políticos, a questão dos vencedores e vencidos e as mudanças econômicas que geraram. Contudo a questão social é sempre muito pouco abordada.
Gostei muito de poder ler algo que me remeteu as questões sociais geradas no pós-guerra. e pude perceber que no final, todos são perdedores.
Obrigada e parabéns Prof.Victor pelo artigo.!!!