quarta-feira, 24 de novembro de 2010

DISCIPLINARIZAÇÃO, CORPO E RESISTÊNCIA: apontamentos sobre o conteúdo dos discursos do jornal anarquista A Plebe.




“Para mim o anarquismo não era uma teoria aplicável em um futuro distante, mas um trabalho cotidiano para libertar-se de suas inibições, as nossas e as alheias, e abolir as barreiras que separavam artificialmente as pessoas.”
Emma Goldman

Na segunda metade do século XIX o Brasil vivia um período de mudanças sociais e econômicas, estimulando a migração de europeus, que chegavam as terras do além mar em busca de novas oportunidades para uma vida melhor. Estes traziam consigo novos elementos culturais, fruto de experiências diferenciadas, que passariam a influir no cotidiano brasileiro. Alguns, além de suas poucas bagagens, trouxeram ainda, idéias que marcariam o século XX e que construiriam um importante momento da história brasileira: tratavam-se dos socialismos em suas mais diferentes perspectivas, e entre eles, o anarquismo[1].
Com a urbanização brasileira centrada no eixo Rio-São Paulo no século XIX, e sua expansão industrial entre os anos de 1900 e 1920, muitos produtos antes importados, passam a ser produzidos no mercado interno. Com este grande crescimento industrial cresce, simultaneamente, a classe operária. As condições que envolviam o trabalho industrial eram precárias. As jornadas de trabalho eram estafantes, durando em média dezesseis horas por dia, seis dias por semana. Os salários eram baixos, e na esfera política, o único direito dos operários era votar, por ocasião das eleições.[2]
É neste contexto que florescem os ideários socialistas. É válido ressaltar que se tratava de um momento novo para o Brasil, que até então só havia convivido com trabalhadores cativos e autônomos. Esta nova classe operária, composta em grande parte por imigrantes europeus (representavam 51% dos trabalhadores industriais em São Paulo e 35% o Rio de Janeiro[3]) em muito influenciaram na politização desta classe trabalhadora.
Muitas organizações operárias socialistas passaram a surgir a partir de greves, que eclodiam em grande número nos primeiros anos do século XX[4]. E foi neste contexto, que vários periódicos foram fundados com intuito de divulgar notícias sobre as movimentações grevistas, dando início à chamada imprensa operária, que ganhou força na primeira metade deste século, se tornando um importante instrumento de propagação das idéias revolucionárias.[5]
No que diz respeito ao anarquismo, as perspectivas trazidas da Europa, apontavam para uma grande rejeição as organizações formais, por parte de seus militantes, o que acabava por dificultar a propagação de seu ideário. É neste ponto que a imprensa libertária ganha destaque. Os anarquistas fundam seus periódicos com objetivo de divulgar suas ideologias políticas, assim como buscando incitar a luta proletária, na tentativa de suprir a ausência de organizações, uma vez que seus jornais assumiam “um grande número de funções normalmente exercidas por uma estrutura organizada”, oferecendo espaços para discussões teóricas, assim como avisos, anúncios e notícias e informações de  ordem prática.[6] 
Estes periódicos serviam como poderoso instrumento, percorrendo grandes distâncias, levando as idéias anárquicas para as regiões deslocadas dos grandes centros de movimentação libertária – artifício muito interessante se considerarmos que trata-se de um país de dimensões continentais. No entanto as dificuldades referentes ao idioma – tanto no que se refere aos imigrantes quanto aos próprios brasileiros das diferentes regiões -, a falta de recursos do setor operário para manterem estas publicações, as perseguições sofridas pelos redatores destes periódicos, e ainda o iletramento das classes populares, apresentavam-se como obstáculos para estas publicações. “O fato de uma publicação existir revelava quase um milagre”.[7] No entanto, estas publicações não apenas resistiram, como também se tornaram a principal fonte para a pesquisa dos movimentos operários do século XX.
Neste contexto, o jornal A Plebe, certamente pode ser citado como um dos mais conhecidos e importantes periódicos da imprensa libertária brasileira, tanto pela extensão do período de sua existência, como pela abrangência de sua circulação. Fundado em junho de 1917 em São Paulo, em plena greve geral, tinha por objetivo servir como instrumento de divulgação das notícias desse conturbado momento, mas acaba firmando-se como importante divulgador da doutrina anarquista, mantendo sua circulação até o ano de 1949, com pequenas interrupções motivadas por perseguições policiais, políticas[8] e problemas financeiros. Fundado por Edgard Leuenroth, o jornal teve vários redatores, desde o próprio Edgard, passando por Florentino de Carvalho, Manuel Campos, Pedro Augusto Mota e Rodrigo Felipe [9].
Muitos eram os temas abordados por este jornal, desde propagandas dos princípios anárquicos, suas ideologias, seus posicionamentos anticlericais e anarco-sindicais, denúncias contra abusos policiais e prisões arbitrárias, informações sobre organizações e encontros sindicais e operários, informativos de greves - tanto no que se referiam a movimentos nacionais quanto no âmbito internacional -, convites para confraternizações e piqueniques entre os militantes da causa anarquista, operários e seus familiares, conferências, até críticas ao Partido Comunista, aos bolcheviques e aos integralistas. Do mesmo modo, também a questão da emancipação feminina e a participação das mulheres na vida pública, educação sexual, controle de natalidade, amor livre, estavam presentes em A Plebe.
Havia uma preocupação perceptível com questões ligadas ao campo moral nos conteúdos dos discursos publicados em A Plebe, além de uma abundância de opiniões pessoais e de debates que aconteciam através das páginas deste periódico. Mas, mesmo que não fosse possível apresentar um programa anárquico único no que se refere às questões morais, havia sim projetos libertários, cujo objetivo estava focado em instituir uma nova moral relativa às relações afetivas, familiares e à moral sexual [10]. Tratava-se da aplicação da liberdade, que pode ser elencada como valor primordial da ideologia anarquista, acompanhada da igualdade, como é possível perceber nas palavras do anarquista Nicolas Walter[11]: “O anarquismo é um modelo ideal que exige, ao mesmo tempo, a liberdade total e a igualdade total.” [12]
Percebendo que havia nos discursos anarquistas deste periódico, um especial destaque a liberdade focada nos corpos do proletariado, tanto masculinos quanto femininos, e compreendendo que este periódico tinha objetivo claro de doutrinação e divulgação dos ideais anárquicos, surge a questão: os discursos políticos libertários buscavam influenciar as construções das experiências percebidas através dos corpos?
Ao analisar as páginas de A Plebe, é possível perceber que os discursos acerca dos corpos eram construídos pensando-os como instrumentos para uma revolução social, que passaria pelas experiências individuais, com especial destaque aqui para aquelas focadas na sexualidade.
Ao considerarmos que as fábricas eram espaços que buscavam constituir trabalhadores disciplinados, lançando mão de vários artifícios que almejavam a formação do trabalhador ideal, concebido dentro de uma perspectiva higienista, constituído nos modelos emergentes normativos de família[13], podemos perceber o viés subversivo dos discursos anarquistas relacionados à moral e as expectativas revolucionárias depositadas nas possibilidades de experiências apresentadas através destes.
Entendendo aqui que o corpo é o instrumento pelo qual a experiência[14] se efetiva, e que este não precisa ser entendido apenas como “objeto da cultura, mas também dotado de agência própria, não apenas como receptáculo de símbolos, mas como produtor de sentido”[15], é possível perceber a intencionalidade da inclusão das temáticas relacionadas ao corpo apresentadas nos discursos anarquistas presentes no jornal A Plebe.
Desta forma está proposto o desafio de pensar o conteúdo destes discursos para além de uma análise focada na perspectiva moral[16], uma vez que estes desejavam imputar uma força política aos corpos, contrapondo-se aos discursos médicos de higienização e normatização, assim como a disciplina fabril, vigentes no período, afastando-se do modelo de operariado ideal, contrapondo-se a uma “tecnologia política do corpo” [17], em prol da revolução social.
Na produção destes discursos, os anarquistas e as anarquistas, nas páginas de A Plebe, “desnudam os corpos” ao se proporem a discutir amor livre, educação sexual, casamento indissolúvel, emancipação feminina, aborto, vasectomia, anticoncepcionais e prostituição, desvinculando estes temas do campo puramente moral e ligando-os ao campo social, e especialmente, ao campo das experiências.
Estariam os discursos anárquicos de A Plebe buscando entender os corpos como produtores de cultura, não somente como produto desta, na tentativa de promover novos sentidos às experiências sociais?
Dentro de uma perspectiva foucaultiana, é possível perceber a resistência as tecnologias políticas e suas formas de vigilância sobre o corpo presentes nas páginas deste periódico anárquico, sendo um exemplo a defesa ao amor livre, que consistia, na verdade, em uma crítica ao modelo da norma burguesa de família, assim como, contrapunha-se à instituição católica do casamento, tachados de “superstição e egoísmo” de uma “vida em sociedade” [18]. Como artifício discursivo, utilizavam a idéia de que este amor livre estaria ligado ao direito ao amor como um sentimento natural, “menos a uma proposta de variação de parceiros, do que a crítica à institucionalização dos sentimentos em formas rígidas e envelhecidas” [19]. Era a maneira com que os libertários, assim como as libertárias questionavam a disciplinarização do amor e do sexo.
É bem verdade que o tema “amor livre” não era questão pacífica nas páginas de A Plebe, e muitos eram os posicionamentos apresentados, nas mais diferentes concepções e entendimentos, sinalizando não apenas para uma diversidade de concepções, a partir das quais, apenas torna-se possível afirmar que havia uma intencionalidade destes discursos – sejam eles a favor ou contra a concepção de “amor livre” – no sentido de que visavam à formação de sujeitos que poderiam dar forma a revolução social almejada pela doutrina anárquica.
Esta tentativa de constituição de saberes que poderiam resistir a disciplina que visava fabricar corpos submissos, “dóceis”, cuja normatização objetivava aumentar “as forças do corpo (em termos econômicos e de utilidade) e diminuir essas mesmas forças (em termo políticos de obediência)” [20], apresentava-se de diferentes formas nas páginas de A Plebe, sendo que em alguns textos é possível encontrar, por exemplo, contraposições aos  saberes médicos, como podemos perceber no trecho selecionado abaixo, em que há uma crítica ao entendimento da prostituição como fruto de patologia:

Esses médicos e sociólogos, que sempre viveram confortavelmente, vão descobrir em todas as prostitutas supostas taras hereditárias no sistema nervoso, ou então, pronunciada preguiça e incapacidade para a luta (...). Dessas supostas taras hereditárias (...) eles, os “homens da ciência”, procuram fazer todo o fundamento da prostituição.[21]

A resistência anarquista as “tecnologias políticas” de vigilância da sexualidade podem ser percebidas também em seu projeto de educação sexual, que ambicionava educar as futuras gerações para uma maior autonomia em relação a seus próprios corpos. Estas campanhas pela educação sexual, tão caras aos anarquistas, eram também seguidas por campanhas realizadas pela própria Igreja Católica, que desde 1931, com a sanção do Papa, proíbe formalmente os pais católicos e professores de esclarecerem os filhos ou alunos – de ambos os sexos - a respeito de assuntos sexuais, sendo que somente os padres ficariam autorizados, em “casos urgentes”, a dar explicações sobre o tema[22].
É importante destacar que a produção destes discursos, apesar de considerados  avançados para o período, tinham influências provenientes do movimento anárquico existente fora das fronteiras brasileiras, como é o caso da influência exercida por Emma Goldman[23], que muito inspirava as militantes engajadas em uma luta pelo emancipação feminina, seja por sua vida militante ou  seja por seus escritos inspiradores, assim como de algumas personalidades – mesmo que contraditórias – como a brasileiraah!! Maria Lacerda de Moura[24], que em seus muitos escritos defendia veementemente o direito ao prazer sexual.
Estes são apenas alguns vislumbres da amplitude das discussões que estavam postas nas páginas deste importante impresso anárquico, mas que sinalizavam para as mudanças (e resistências) relacionadas à sexualidade e ao corpo que já se encontravam em curso na modernidade ocidental[25], e que portanto não podem ser considerado um estudo conclusivo ou acabado, pois as análises referentes a corporalidade a partir da proposta anárquica de formação de corpos revolucionários, capazes de se contraporem a tentativa de formação de “corpos dóceis”, presentes nas páginas de A Plebe, possuem muitos outros elementos que não foram contemplados neste artigo, mas que sinalizam para novas perspectivas de análises neste tão instigante tema, para além de uma simples análise pelo viés da moralidade, na tentativa de apresentar a profundidade que pode estar presentes nos estudos realizados sob perspectivas interdisciplinares.



[1] Historicamente o anarquismo surge como movimento organizado durante a Associação Internacional dos trabalhadores (também chamada de Primeira Internacional), em 1864, quando passam a distinguir-se efetivamente dos marxistas. In: WALTER, Nicolas. Do Anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2000, p. 09-10.
[2]  BATALHA, Claudio. O Movimento Operário na Primeira República. Rio De Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 08-17.
[3] Idem, p. 12.
[4] Idem, p. 39.
[5] FERREIRA, Maria Nazareth. A Imprensa Operária no Brasil 1880-1920. Petrópolis, Vozes, 1978, p.19-46.
[6] GROSSMAN, Hadassa. A imagem da mulher na imprensa de esquerda no Brasil, 1889-1922: uma exposição sumária. Cadernos AEL. UNICAMP\IFCH, v.8\9, 1998, p. 70.
[7] Idem, ibidem.
[8] Na década de 1930 era Rodolfo Felipe quem dirigia A Plebe, em uma época em que ainda era possível sentir os abalos causados pela “revolução” de 30 e a chegada de Getúlio Vargas ao poder. Era época de intensa perseguição aos anarquistas. Evidentemente, estas perseguições não eram uma grande novidade para os militantes, entretanto foi neste período que se inaugurou um diferencial, o DEOPS-SP (Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo: órgão de repressão política utilizado no governo Vargas para coibir e controlar a existência de focos políticos contrários ao governo instaurado) que passou a funcionar  intensa e sistematicamente, tornando mais arriscada a militância efetiva. Nos anos de 1934 e 1935, tanto o diretor do jornal Rodolfo Felipe, que havia sido preso algumas vezes, quanto o próprio periódico A Plebe, experimentaram um período de “sossego”.
[9] SILVA, Rodrigo Rosa. As idéias como delito: a imprensa anarquista nos registros do DEOPS-SP (1930-1945). In: DEMINICIS, Rafael Borges e REIS FILHOS, Daniel Aarão. História do Anarquismo no Brasil  vol. I. Niterói – RJ: Mauad X, 2006, p. 113-132.
[10] RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar (1890-1930). 2ª Ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p.95.
[11] Anarquista contemporâneo, jornalista e conferencista inglês que faleceu em 07 de março de 2000, com  65 anos.
[12] WALTER, Nicolas. Do Anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2000, p. 06.

[13] RAGO, 1985, p. 17-18.
[14] CSORDAS, Thomas. Corpo, significado, cura. Porto alegre: Ed. UFRGS, 2008.
[15] MALUF, Sônia Weidner. Corpo e corporalidade: abordagens antropológicas. Esboços. PPGH\UFSC, v.9, 2001, p.88.
[16]  Uma pesquisadora que realizou importantes análises neste sentido foi Margareth Rago, indubitavelmente uma referência no que se refere ao tema.
[17] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 24ª Ed., Petrópolis: Vozes, 1987.
[18] A Plebe. São Paulo, 19 de janeiro de 1935.
[19]RAGO, Margareth. Do amor Livre. In: Revista Libertárias: Revista de Cultura Libertária, n. 03. São Paulo, set. 1998, p.11.
[20] FOUCAULT, 1987, p. 119.
[21] A Plebe, 19 de janeiro de 1935.
[22] RIBAS, Ana Claudia. A “Boa Imprensa” e a “Sagrada família”: sexualidade, casamento e moral nos discursos da imprensa católica em Florianópolis – 1929/1959.  Florianópolis, UDESC, 2009. Dissertação de Mestrado.
[23] Nasceu em 1869, na Rússia, mas em 1886 migrou para a América, onde trabalhou como operária. Tida como uma “oradora nata” realizou inúmeras conferências em prol da emancipação feminina. Foi presa várias vezes. Participou como colaboradora em diversos jornais anarquistas, até que passou a publicar sua própria revista chamada Mother Earth. Morre em fevereiro de 1940.
[24] Outras militantes anarquistas de destaque também tiveram textos seus citados em A Plebe, como por exemplo: Anita Figueiredo e Sônia Oiticica, entre outras.
[25] GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: UNESP, 1993.







Ana Claudia Ribas
Mestre em História do Tempo Presente e Doutorando em Ciências Humanas
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis - SC

domingo, 14 de novembro de 2010

FLOR DE MACAÉ

Um pequeno poema dedicado
à aniversariante de hoje (14/11/2010),
à uma macaense.
à uma escorpiana, que de escorpião nada tem.
à uma educadora e uma das bases do Ponto Nulo no Tempo:
Ivana Matos Pinheiro Tavares



A vida roda, roda, roda...
O mundo gira, gira, gira...
Tudo passa, passa, passa...
Tudo muda, muda, muda...

Rejuvenesce tu’alma.
Eu não vejo tua casca,
Só teu interior.

Afinal, para que serve tua casca?
Se tua experiência ainda flui juvenil.
Pra que serve tua casca?
Se teu manto sagrado é invisível.
Pra que serve tua casca?
Se é a tua alegria que nos vêm, emana.
Pra que serve a tua casca?
Se em você encontra-se a flor de Macaé:
Ivana.

Ivana, Ivana, Ivana!
Ainda cantam os senhores desta terra,
Que agora podem andar tranquilamente...
Sobre o Atlântico e a maré.
Sobre o silêncio do Sana.
Sobre os refluxos do Macaé.
Sobre nossos pensamentos, Ivana.

Ainda caminham...
Sempre vão caminhar...
Como você caminha sobre nossas lembranças.
Nossas alegres lembranças.

Ramon Mulin Lopes
Graduando em História
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé
Macaé-RJ

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A EDUCAÇÃO E OS AFRO-BRASILEIROS: BREVÍSSIMA PANORÂMICA DO SÉCULO XX

Pretendemos demonstrar, em linhas gerais, algumas ações pensadas, no século XX, por jornalistas, políticos, intelectuais e dirigentes de movimentos negros, para que  a inserção dos afro-brasileiros ocorresse nos níveis ocupacionais e de renda no mercado de trabalho nacional, bem como confirmar o quanto a educação pode influenciar o processo de construção da cidadania. 
Inicialmente, cabe trazer à luz o que os dicionários indicam sobre o termo “afro-brasileiro”. Lemos: 1. Relativo ou pertencente à África e ao Brasil; 2. Pertencente ou relativo à cultura dos afro-brasileiros; 3. Brasileiro descendente de africanos negros e ainda uma quarta definição: relativo aos africanos e aos brasileiros, simultaneamente. 
Tomaremos a definição que designa o termo “afro-brasileiro” como “o segmento populacional negro e mestiço da sociedade brasileira que descende de africanos”, indicando, conforme pensamento do sociólogo Ahyas Siss[1], a dupla implicação política do termo. A primeira, reflete o aumento no plano da consciência racial entre negros, conduzindo à formulação de uma etnicidade Afro-Brasileira. É a partir da década de 70 que o termo torna-se politicamente internacionalizado, marcando uma nova fase de luta social do movimento negro, sendo esta a segunda implicação política promovida. 
Tem-se notícia de que o emprego do termo “afro-brasileiro” deu-se em 06 de outubro de 1907, pelas vias do jornal negro O Propugnador, que integrava a chamada Imprensa Alternativa Negra – IAN.
A década de 20, marcada pela exclusão da grande maioria da população do processo educacional (considerando que apenas 25% dela era alfabetizada), trouxe um ganho quando, em 1929, por conta da crise do café, um novo modelo econômico foi implantado por Getúlio Vargas. Com isso,  deu-se a criação do Ministério da Educação e Saúde, sendo este o primeiro Ministério Público voltado para o planejamento da educação brasileira, aparecendo então, legalmente expressos, pela primeira vez,  os caracteres de obrigatoriedade e de gratuidade da educação. 
É também nas primeiras décadas do século XX que os afro-brasileiros buscam por educação, quando jornais e organizações conferem ênfase à mesma, e, consequentemente, passam a cotejar o aumento do capital educacional do grupo racial afro, lembrando que é a partir de meados da década de 20 que na história da educação no Brasil presenciamos um entusiasmo e um vigor maiores. É a Escola Nova no Brasil em oposição à “Tradicional”. 
Numa estrutura permeada de brancos, tendo os afro-brasileiros identificado a precariedade da sua educação, busca-se, nesse tempo, conhecido como o da Escola Nova, remodelar e modernizar a ordem político-social, sob o credo do liberalismo, com efervescentes debates ideológicos. 
Vale citar algumas ações empreendidas para que os afro-brasileiros obtivessem acesso à educação: jornais, movimentos, agremiações, irmandades e seminários convergem, em prol da educação dos afro-brasileiros, inobstante, muitas das vezes, o sucesso dos empreendimentos não produzirem os efeitos desejados ou se apresentarem de forma dissonante em relação aos propósitos inicialmente pretendidos. 
Destacam-se algumas organizações de ativistas tais como o Centro Cívico Palmares, o Clube Negro de Cultura Social, a Sociedade Beneficente Amigos da Pátria, o Grêmio Dramático e Recreativo Kosmos, o Clube 13 de Maio dos Homens Pretos e a Frente Negra Brasileira. 
Contudo, é a partir de meados da década de 1970 que aumenta o número de análises acadêmicas e de estudos elaborados por pesquisadores afro-brasileiros, tendo a educação como foco principal, ora de um modo geral, ora especificamente voltada aos negros e aos mestiços. Intelectuais negros como Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Ironides Rodrigues, bem como o poeta negro Solano Trindade  integram frentes criadas em favor do negro - que continua à margem, considerando-se que “a participação do segmento populacional afro-brasileiro no processo educacional formal tem ocorrido de forma lenta, acidentada e limitada”, na opinião de Siss. 
Por derradeiro, na década de 1980, com o surgimento da “Pedagogia Interétnica”, são aprofundados os estudos sobre a cultura, a literatura, a poesia, a dança, a música e a dramaturgia afro-brasileira, tempo em que estudos envolvendo o binômio Raça e Educação ou Multiculturalismo e Educação desenvolvem-se e nutrem as discussões. Discussões que precisam estar presentes nos fóruns de estudo, principalmente os da sala de aula. 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: 
SISS, Ahyas. A educação e os afro-brasileiros: algumas considerações. In: Educação e Cultura: pensando em cidadania. Coletânea organizada pela Professora Maria Alice Rezende Gonçalves. Ed. QUARTET, s/d. p. 61-86.



[1] Mestre em Sociologia pelo IUPERJ, Doutorando em Educação (UFF) e Professor do PENESB – Programa de Educação Sobre o Negro na Sociedade Brasileira da UFF.


Arquivo: Paper
“A educação e os afro-brasileiros: brevíssima panorâmica do século XX”

MARTHA ADED
Graduando em  História
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé
Macaé/RJ,14/09/2010

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

ENSINO DE HISTÓRIA


As questões que envolvem a educação tem gerado inúmeras e acirradas discussões. No interior dessas discussões ressalto algumas questões ligadas ao ensino de História, sendo esta disciplina uma das mais complexas para se ensinar, pois, a História é uma ciência ao mesmo tempo conceitual e teórica que requer muita leitura, raciocínio, coerência e reflexão. Como nos mostra os Pinsk através do historiador Hobsbawm: “...é impossível negar a importância, sempre atual, do ensino de História. Nas palavras do historiador Eric Hobsbawm: ‘Ser membro da consciência humana é situar-se com relação a seu passado’, um componente inevitável das instituições, valores e padrões da sociedade”  (Pinsky, 2005. P. 19). Por isso mesmo, é que essa disciplina exige do professor uma permanente atualização e pesquisa. Todo professor de história deve antes de tudo, tornar-se um pesquisador. O professor Knauss nos ensina que o processo de construção de conhecimento demanda pesquisa científica (Knauss, 2001). Como o professor, nesse caso o professor de História, poderá levar seu educando a compreensão do mundo, indagá-lo e ao mesmo tempo procurar induzir nesse mesmo educando o sentido do saber histórico, como um saber em construção, se ele próprio não buscar essa construção? Nesse sentido é importante lembrar que a construção do conhecimento é permanente e constante, portanto o sujeito do conhecimento é um sujeito em permanente construção, pois conhecer o mundo em que vivemos requer estudo permanente, seja o sujeito do conhecimento aluno, professor/pesquisador, ou qualquer outro indivíduo.
 No exercício do magistério para que haja coerência, dinamismo e satisfação das necessidades de aprendizagem do educando, é fundamental que o professor tenha as condições favoráveis para o desempenho de suas funções, incluindo a de pesquisador. Tais condições passam não só pela melhoria de salários, como também pelos recursos pedagógicos necessários que deveriam estar ao seu alcance e dispor. Além disso, é de fundamental importância que ao professor sejam dados o suporte legal necessário para que possa agir, dentro da ética que lhe é facultada, quando desrespeitado pelo seu educando. A nossa realidade atual, clama veementemente o resgate à dignidade do professor, pois, grande parte de nossa juventude precisa de um referencial positivo, para tornar-se pessoa eticamente humana e dotada de responsabilidade para com o social. “No Brasil, diante do panorama atual, só uma educação de qualidade, que tenha o ser humano e suas realizações como eixo central, pode nos fazer, como nação, dar o salto qualitativo a que tanto aspiramos, por meio da qualificação de nossos jovens (...) a era de comunicação e serviços em que estamos prestes a viver tende a substituir a força física pela sutileza e pela educação formal. Os países que não agirem a favor da História ficarão fadados a distanciar cada vez mais daqueles outros, ricos ou não, que colocam a educação e a cultura (incluindo a história) como prioridade real” (Pinsky, 2005. P. 21-2). Portanto uma educação de qualidade de fato, cabe não só ao professor, mas também requer vontade política, responsabilidade, compromisso, ética e investimento no Ser Humano, por parte dos que governam este país. Portanto, não basta apenas que o professor cumpra a sua parte, para que ele possa cumprir a sua parte, requer também investimento e valorização na sua formação.
Historicamente a relação entre professor, aluno e sociedade tem sido mediados pela imagem do professor como um mero reprodutor da cultura dominante e burocrata. Todavia, o professor longe de ser um mero executor, assume funções de um verdadeiro intelectual, capaz de repensar e reformular, criticamente, as condições e tradições históricas que tem impedido de assumir suas potencialidades como intelectual e como profissional ativo e reflexivo, considerando o ato educativo como político e como uma forma de luta.  Nessa luta o professor de história deve utilizar seu espaço no currículo, para selecionar conteúdos capazes de formar a consciência histórica do educando. No ensino de História, o professor tem que tomar posição e ter consciência de seu papel na transmissão do conhecimento em todos os níveis do ensino/aprendizagem. Tendo em vista que a transmissão crítica de conhecimento é apenas um meio, não um fim, mas é necessário para a afirmação da consciência histórica. Quem detém essa consciência está apto a colaborar com o processo de emancipação do Homem rumo à cidadania plena, isto é, o cidadão dotado dos direitos civis, políticos e sociais. “...o conhecimento histórico deve ser orientado no sentido de indagar a relação dos sujeitos com os seus objetos de conhecimento, provocando seu posicionamento, questionando as formas de existência humana e promovendo a redefinição de posicionamentos  dos sujeitos no mundo em que vivem. A partir disso, é preciso considerar que a produção do saber histórico evidencia-se como instrumento do mundo e não mera disciplina (Knauss, 2001. P. 28). Ai deve residir nossa necessidade de estudo permanente enquanto formadores de seres Humanos pensantes e atores no mundo em que vivemos. Nossa responsabilidade é de suma importância, não podemos em hipótese alguma nos esquivarmos dela. É claro que a luta para alcançarmos um ensino de História de qualidade não é de agora, vem de muito tempo.
Com o golpe militar de 1964, o ensino de História sofreu uma série de mudanças que se aprofundaram após 1968. No bojo das transformações impostas pela ditadura, a desqualificação do professor de uma maneira geral a do professor de História em particular, deu-se por força das imposições político-ideológicas, que levaram o ensino de História a uma ação engendrada, a serviço daquela ideologia dominante. Os princípios norteadores da nova educação implantada pelos governos militares – Segurança Nacional e desenvolvimento – chocaram-se com os princípios de autonomia do professor, daí todo um trabalho de rebaixamento e desqualificação desse profissional. Paralelo a isso, o Estado autoritário impôs um programa de “requalificação” de professores através das chamadas licenciaturas curtas. Essa política incidiu mais fortemente sobre o ensino de História e Geografia, que foram substituídos pela disciplina de Estudos Sociais.
O Estado passou a investir na requalificação de professores da área de educação com o objetivo de exercer um controle ideológico na formação de jovens, na formação dos “cidadãos” e do pensamento brasileiro. E nesse empreendimento, o profissional oriundo de uma licenciatura curta e com um conteúdo comprometido com os ditames do poder, estaria mais propenso a responder às expectativas ideológicas do Estado autoritário.
Passado o período de ditadura, com a abertura política e o surgimento do Estado “democrático”, o projeto educacional tem-se apresentado sobre outro prisma. Porém, não tem conseguido acompanhar a realidade social a que estamos inseridos. O afastamento das questões reais e da própria autonomia do professor, diante dos parcos recursos que lhe são oferecidos, com conteúdos mais complexos e ampliados, ao mesmo tempo em que se diminui a grade curricular para a disciplina, dificultam o retorno da História como disciplina central na formação de opinião. “Ao substituir aulas de História, drasticamente reduzidas em muitas escolas, por disciplinas mais práticas e mais úteis (...) abre-se mão de um instrumento precioso para a formação integral do aluno” (Pinsky, 2005. P. 19. Grifos do autor). Tal redução vem ao mesmo tempo em que ocorre a ampliação dos conteúdos na disciplina de História, como a necessidade do estudo do século XX e do cumprimento da Lei 11.645, de 2008, que inclui no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Como reação e tentativa de revertermos este processo, devemos buscar na prática um ensino conscientizador. Da maneira que o ensino se apresenta, que espécie de pensamento crítico a escola está formando? Como o professor de História pode influir nele, ratificando-o ou transformando-o? Em um mundo que se configura cada vez mais de excluídos do bem estar social, como direcionar o conhecimento dos processos históricos para proveito desses despossuídos? Para que sejam principalmente esses os questionadores desse sistema e das injustiças que nele se apresentam.
A História não deve ser a ciência que sirva para legitimar o poder, mas sim para questioná-lo. E isso só ocorre quando os menos favorecidos aprendem a se colocar e a reivindicar seus direitos e sua inclusão enquanto indivíduos pertencentes a uma sociedade historicamente constituída. Afinal, como bem afirma Alberto Camus: “Só conseguimos agir no nosso próprio tempo, entre os homens que nos cercam. Nada sabemos, enquanto não soubermos se temos o direito de matar este outro que se acha diante de nós ou de consentir que seja morto”. (Camus, 1997, p. 14). Principalmente quando se trata da morte intelectual. Precisamos resgatar o que a ditadura nos tirou – a consciência de ação, ou melhor, a consciência de agir no mundo, de sermos sujeito da nossa própria História. Enquanto nós professores de História temos mais do que todos a obrigação de levar adiante essa ação, por isso não podemos nos descuidar da nossa formação permanente, trabalharmos o máximo possível para que a Lei 11.645 seja cumprida, pois, afinal, o povo brasileiro é majoritariamente negro e indígena. Enfim, é lutando pelos nossos direitos, primando para que haja um ensino de qualidade de fato e pela formação de Seres pensantes, historicamente conscientes e socialmente úteis, que estaremos cumprindo com o nosso papel não só de Professores que somos, mas também de construtores de uma cidadania de fato e não de fachada.

Referências Bibliográficas

BITTENCOURT, Circe (org). O saber histórico na sala de aula. 4. ed. São Paulo : Contexto, 2000.

CAMUS, Albert. O Homem revoltado. 3. ed.  Rio de Janeiro : Record, 1997.

DÉA, R. Fenelon. A questão dos estudos sociais. Cadernos CEDES. A prática do ensino de história. São Paulo: Cortez; CEDES. N.10, 1984.

PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi. Por uma história prazerosa e conseqüente. In: KARNAL, Leandro (org). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 3. ed. – São Paulo : Contexto, 2005.

KNAUSS, Paulo. Sobre a norma e o óbvio: a sala de aula como lugar de pesquisa. In: NIKITIUK, Sônia L. (org). Repensando o ensino de história. 3. ed. – São Paulo : Cortez, 2001. (Coleção questões da nossa época; v. 52).



Jussara Garcia Celestino. Mestre em Memória social e documento pela UNIRIO, Pós em História Contemporânea e Brasil pós-30 pela UFF, graduada em História pela PUC. Participou da elaboração do Guia de Fontes para a História do Ensino Médico no Rio de Janeiro (1808-1907) pela FIOCRUZ, Casa de Oswaldo Cruz. Atualmente leciona na FAFIMA a disciplina de Metodologia do Ensino de História. É professora das redes estadual e municipal de Macaé. 

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

BARBÁRIE E MODERNIDADE NO SÉCULO XX

O vocábulo “bárbaro” é de origem grega, designando, na Antiguidade, as nações não-gregas, consideradas primitivas, incultas, atrasadas e brutais. A oposição entre civilização e barbárie é, pois, antiga. Ela encontra uma nova legitimidade na filosofia iluminista e será herdada pela esquerda. O termo “barbárie” tem, segundo o dicionário, dois significados distintos, mas ligados: “falta de civilização” e “crueldade de bárbaro”. A história do século XX nos obriga a dissociar essas duas acepções e refletir sobre o conceito – aparentemente contraditório, mas de fato perfeitamente coerente – de “barbárie civilizada”. Em que consiste o processo civilizador? Como bem demonstrou Norbert Elias, um de seus aspectos mais importantes é que a violência não é mais exercida de maneira espontânea, irracional e emocional pelos indivíduos, mas é monopolizada e centralizada pelo Estado, mais precisamente, pelas forças armadas e pela polícia. Graças ao processo civilizador, as emoções são controladas, o caminho da sociedade é pacificado e a coerção física fica concentrada nas mãos do poder político[1]. O que Elias, no entanto, não parece ter percebido é o reverso dessa brilhante medalha: o formidável potencial de violência acumulado pelo Estado. Inspirado por uma filosofia otimista do progresso, ele podia escrever, ainda em 1939: “Comparada ao furor do combate abissínio (...) ou daquelas tribos da época das grandes migrações, a agressividade das nações mais belicosas do mundo civilizado parece moderada (...); ela só se manifesta em sua força brutal e sem limites em sonho e em alguns fenômenos que nós qualificamos de ‘patológicos’”[2]. Alguns meses depois dessas linhas terem sido escritas, começava uma guerra entre nações “civilizadas” cuja “força brutal e sem limites” é simplesmente impossível de comparar com o pobre “furor” dos combatentes etíopes, tamanha a desproporção. O lado sinistro do “processo civilizador” e da monopolização estatal da violência se manifestou em toda a sua terrível potência.
            Se nós nos referimos ao segundo sentido da palavra “bárbaro” – atos cruéis, desumanos, a produção deliberada de sofrimento e a morte deliberada de não-combatentes (crianças, em particular) – nenhum século na História conheceu manifestações de barbárie tão extensas, tão massivas e tão sistemáticas quanto o século XX. Certamente a história humana é rica em atos bárbaros, cometidos tanto pelas nações “civilizadas” quanto pelas tribos “selvagens”. A história moderna, depois da conquista das Américas, parece uma sucessão de atos desse gênero: o massacre de indígenas nas Américas, o tráfico negreiro, as guerras coloniais. Trata-se de uma barbárie “civilizada”, isto é, conduzida pelos impérios coloniais economicamente mais avançados.
            Karl Marx era um dos críticos mais ferozes desses tipos de práticas maléficas e destruidoras da modernidade, que para ele estão associadas às necessidades de acumulação de capital. Em “O Capital”, especialmente no capítulo sobre a acumulação primitiva, encontra-se uma crítica radical aos horrores da expansão colonial: a escravização ou o extermínio dos indígenas, as guerras de conquista, o tráfico negreiro. Essas “barbáries e atrocidades execráveis” – que segundo Marx – “não têm paralelo em qualquer outra era da história universal, em nenhuma raça, por mais grosseira, impiedosa e sem pudor que ela tenha sido” – não foram simplesmente passadas aos lucros e perdas do progresso histórico, mas devidamente denunciadas como uma “infâmia”[3]. Considerando algumas das manifestações mais sinistras do capitalismo, como as leis dos pobres ou as workhouses – estas “bastilhas de operários” -, Marx escreveu em 1847 esta passagem surpreendente e profética, que parece anunciar a Escola de Frankfurt: “A barbárie reapareceu, mas desta vez ela é engendrada no próprio seio da civilização e é parte integrante dela. É a barbárie leprosa, a barbárie como lepra da civilização”[4]. Mas com o século XX, um limite é transgredido, passando-se a um nível superior: a diferença é qualitativa. Trata-se de uma barbárie especificamente moderna, do ponto de vista de seu etos, de sua ideologia, de seus meios, de sua estrutura. Nós voltaremos a esse ponto.
            A Primeira Guerra Mundial inaugurou esse novo estágio da barbárie civilizada. Dois autores, os primeiros, soaram o sinal de alarme em 1914-15: Rosa Luxemburgo e Franz Kafka. Apesar de suas evidentes diferenças, eles têm em comum o fato de terem tido a intuição – cada um à sua maneira – de que alguma coisa sem precedentes estava para se constituir no curso daquela guerra.
            Ao usar a palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, Rosa Luxemburgo em A Crise da Social-Democracia, de 1915 (assinada com o pseudônimo Junius), rompeu com a concepção – de origem burguesa, mas adotada pela Segunda Internacional – da história como progresso irresistível, inevitável, “garantido” pelas leis “objetivas” do desenvolvimento econômico ou da evolução social. Essa palavra de ordem é sugerida por certos textos de Marx ou de Engels, mas é Rosa Luxemburgo quem dá a ela essa formulação explícita e elaborada. Ela implica uma percepção da História como um processo aberto, como uma série de “bifurcações”, nas quais o “fator subjetivo” – consciência, organização, iniciativa – dos oprimidos torna-se decisivo. Não se trata mais de esperar que o fruto “amadureça”, segundo as “leis naturais” da economia ou da história, mas de agir antes que seja tarde demais. Porque o outro lado da alternativa é um sinistro perigo: a barbárie. Em um primeiro momento ela parece considerar a “recaída da barbárie” como “a aniquilação da civilização”, uma decadência análoga àquela da Roma antiga[5]. Mas logo ela se dá conta que não se trata de uma impossível “regressão” a um passado tribal, primitivo ou “selvagem”, mas antes, de uma barbárie eminentemente moderna, da qual a Primeira Guerra Mundial dá um exemplo surpreendente, bem pior em sua desumanidade assassina do que as práticas guerreiras dos conquistadores “bárbaros” do fim do Império Romano. Jamais no passado tecnologias tão modernas – os tanques, o gás, a aviação militar – tinham sido colocadas a serviço de uma política imperialista de massacre e de agressão em uma escala tão imensa.
            As intuições de Kafka são de uma natureza amplamente diversa. É sob a forma literária e imaginária que ele descreve a nova barbárie. Trata-se de uma novela intitulada A Colônia Penal: em uma colônia francesa, um soldado “indígena” é condenado à morte por oficiais cuja doutrina jurídica resume, em poucas palavras, a quintessência do arbitrário: “a culpabilidade não deve jamais ser colocada em dúvida”. Sua execução deve ser cumprida por uma máquina de tortura que escreve sobre seu corpo, com agulhas que o atravessam, a frase “Honra teus superiores”. A personagem central da novela não é nem o viajante que observa os acontecimentos com uma hostilidade muda, nem o prisioneiro, que não reage de modo nenhum, nem o oficial que preside a execução, nem o comandante da colônia. É a máquina mesma. Toda a narrativa gira em torno desse sinistro aparelho (Apparat), que parece, mais e mais, no curso da explicação detalhada que o oficial dá ao viajante, como um fim em si mesmo. O Aparelho não está lá para executar o homem, é, sobretudo, este que está lá pelo Aparelho, para fornecer um corpo sobre o qual ele possa escrever sua obra-prima estética, sua inscrição sangrenta ilustrada de “muitos florilégios e ornamentos”. O oficial mesmo é apenas um servidor da Máquina e, finalmente, ele mesmo se sacrifica a esse insaciável Moloch[6]. Em que “máquina de poder” bárbara, em que “aparelho da autoridade” sacrificador de vidas humanas pensava Kafka? A Colônia Penal foi escrita em outubro de 1914, três meses após a eclosão da Grande Guerra. Há poucos textos na literatura universal que apresentem de maneira tão penetrante a lógica mortífera da barbárie moderna como mecanismo impessoal.
            Esses pressentimentos parecem se perder nos anos do pós-guerra. Walter Benjamin é um dos raros pensadores marxistas a compreender que o progresso técnico e industrial pode ser portador de catástrofes nunca antes imaginadas. Daí seu pessimismo – não fatalista, mas ativo e revolucionário. Em um artigo de 1929 ele definia a política revolucionária como “a organização do pessimismo” – um pessimismo em todas as linhas: desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do povo europeu. E acrescenta ironicamente: “confiança ilimitada somente na IG Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe[7]. Ora, mesmo Benjamin, o mais pessimista de todos, não podia adivinhar a que ponto essas duas instituições iriam mostrar, alguns anos mais tarde, a capacidade maléfica e destrutiva da modernidade[8].
            Pode-se definir como propriamente moderna a barbárie que apresenta as seguintes características:
  • Utilização de meios técnicos modernos. Industrialização do homicídio. Extermínio em massa graças às tecnologias científicas de ponta;
  • Impessoalidade do massacre. Populações inteiras – homens, mulheres, crianças e idosos – são eliminados com o menor contato pessoal possível entre quem toma as decisões e as vítimas;
  • Gestão burocrática e administrativa eficaz, planificada, “racional” (em termos instrumentais) dos atos bárbaros;
  • Ideologia legitimadora de tipo moderno: “biológica”, “higiênica”, “científica” (e não religiosa ou tradicionalista);
  • Todos os crimes contra a humanidade, genocídios e massacres do século XX não são modernos no mesmo grau: o genocídio dos armênios em 1915, o genocídio levado a cabo por Pol Pot no Camboja, aquele dos tutsis em Ruanda, etc., associam, cada um com suas especificidades, traços modernos e traços arcaicos.

Os quatro massacres que encarnam de maneira mais acabada a modernidade da barbárie são o genocídio nazista contra judeus e ciganos, as bombas atômicas de Hiroshima e Nagazaki, o Gulag stalinista e a guerra norte-americana no Vietnã. Os dois primeiros são provavelmente os mais integralmente modernos: as câmaras de gás nazistas e a morte atômica norte-americana contêm, praticamente, todos os ingredientes da barbárie tecno-burocrática moderna.
Auschwitz representa a modernidade não somente pela sua estrutura de fábrica de mortes cientificamente organizada e que utiliza as técnicas mais eficazes. O genocídio dos judeus e dos ciganos é também, como observa Zygmunt Bauman, um produto típico da cultura racional burocrática, que elimina da gestão administrativa toda e qualquer interferência moral. Ele é, deste ponto de vista, um dos possíveis resultados do processo civilizador como racionalização e centralização da violência e como produção social da indiferença moral.

Como toda outra ação conduzida de maneira moderna – racional, planificada, cientificamente informada, gerida de forma eficaz e coordenada – o Holocausto deixou para trás todos seus pretensos equivalentes pré-modernos, revelando-os em comparação como primitivos, esbanjadores e ineficazes. (...) Ele se eleva muito acima dos episódios de genocídio do passado, da mesma forma que a fábrica industrial moderna está bem acima da oficina artesanal...”[9]

            A ideologia legitimadora do genocídio é ela também de tipo moderno, pseudocientífico, biológico, antropométrico, eugenista. A utilização obsessiva de fórmulas pseudo-medicinais é característica do discurso anti-semita dos dirigentes nazistas, o que pode ser notado nas conversações privadas deles. Numa carta a Himmler em 1942, Adolf Hitler insistia: “A batalha na qual nós estamos engajados hoje é do mesmo tipo que a batalha liderada, no século passado, por Pasteur e Koch. Quantas doenças não tiveram sua origem no vírus judeu... Nós não encontraremos nossa saúde sem eliminar os judeus”[10].
            Em seu notável ensaio sobre Auschwitz[11], Enzo Traverso destaca, com palavras sóbrias, precisas e lúcidas, o contexto do genocídio. Não se trata nem de uma simples “resistência irracional à modernização”, nem de um resíduo de barbárie antiga, mas de uma manifestação patológica da modernidade, do rosto escondido, infernal, da civilização ocidental, de uma barbárie industrial, tecnológica, “racional” (do ponto de vista instrumental). Tanto a motivação decisiva do genocídio – a biologia racial – quanto suas formas de realização – as câmaras de gás – eram perfeitamente modernas. Se a racionalidade instrumental não basta para explicar Auschwitz, ela é sua condição necessária e indispensável. Encontra-se nos meios de extermínio nazistas uma combinação de diferentes instituições típicas da modernidade: aí se fazem presentes a um só tempo a prisão descrita por Foucault, a fábrica capitalista da qual falava Marx, a “organização científica do trabalho” de Taylor, a administração racional/burocrática segundo Max Weber.
            Este último tinha intuído, como sublinha Marcuse, a transformação da razão ocidental em força destrutiva. Sua análise da burocracia como máquina “desumanizada”, impessoal, sem amor nem paixão, indiferente a tudo aquilo que não é a sua tarefa hierárquica, é essencial para compreender a lógica reificada dos campos da morte. Isso vale também para a fábrica capitalista que estava presente em Auschwitz, ao mesmo tempo que também se fazia presente nas oficinas de trabalho escravo da empresa IG Farben e nas câmaras de gás, locais de produção “em cadeia” da morte. Mas a “solução final” é irredutível a toda lógica econômica: a morte não é nem uma mercadoria, nem uma fonte de lucro.
            Traverso critica, de maneira muito convincente, as interpretações – inspiradas, em um grau ou outro, pela ideologia do progresso – do nazismo e do genocídio como produto da história do irracionalismo alemão (Georg Lukács), de uma “saída” da Alemanha para fora do berço ocidental (Jürgen Habermas) ou de um movimento de “descivilização” (Entzivilisierung) inspirado por uma ideolofia “pré-industrial” (Norbert Elias). Se o processo civilizador significa, antes de tudo, a monopolização da violência pelo Estado – como o mostram, depois de Hobbes, tanto Weber quanto Elias – é necessário reconhecer que a violência do Estado está na origem de todos os genocídios do século XX. Auschwitz não representa uma “regressão” em direção ao passado, em direção a uma idade bárbara primordial, mas é realmente um dos rostos possíveis da civilização industrial ocidental. Ele constitui, ao mesmo tempo, uma ruptura com a herança humanista e universalista dos iluministas e um exemplo terrível das potencialidades negativas e destrutivas de nossa civilização.
            Se o extermínio dos judeus pelo III Reich é comparável a outros atos bárbaros, nem por isso ele deixa de ser um evento singular.É necessário recusar as interpretações que eliminam as diferenças entre Auschwitz e os campos soviéticos, ou os massacres coloniais, os pogroms, etc.[12] O crime de guerra que tem mais afinidades com Auschwitz é Hiroshima, como compreenderam bem Günther Anders e Dwight MacDonald: nos dois casos delega-se a tarefa a uma máquina de morte formidavelmente moderna, tecnológica e “racional”. Mas as diferenças são fundamentais. Inicialmente, as autoridades norte-americanas não tiveram jamais como objetivo – como aquelas do III Reich – realizar o genocídio de toda uma população: no caso das cidades japonesas, o massacre não era, como nos campos nazistas,um fim em si mesmo, mas um simples “meio” para atingir objetivos políticos. A finalidade da bomba atômica não era o extermínio da população japonesa como um fim autônomo. Tratava-se, sobretudo, de acelerar o fim da guerra e demonstrar a supremacia militar norte-americana face à União Soviética. Em um relatório secreto de maio de 1945 ao presidente Truman, o Target Commitee – o “Comitê do Alvo”, composto pelos generais Grove, Norstadt e do matemático Von Neumann – observa friamente: “A morte e a destruição irão não somente intimidar os japoneses sobreviventes a fazer pressão pela capitulação, mas também (a bônus) assustar a União Soviética. Em síntese, a América poderia terminar mais rapidamente a guerra e, ao mesmo tempo, ajudar a moldar o mundo do pós-guerra”[13]. Para obter esses objetivos políticos, a ciência e a tecnologia mais avançadas foram utilizadas e centenas de milhares de civis inocentes, homens, mulheres e crianças, foram massacrados – sem falar da contaminação pela irradiação nuclear das gerações futuras.
            Uma outra diferença com Auschwitz é, sem dúvida, o número bem inferior de vítimas. Mas a comparação das duas formas de barbárie burocrático-militar é muito pertinente. Os próprios dirigentes americanos estavam conscientes do paralelo com os crimes nazistas: em uma conversa com Truman no dia 6 de junho de 1945, o Secretário de Estado Harry L. Stimson relatava seus sentimentos: “Eu disse a ele que estava inquieto com esse aspecto da guerra... porque eu não queria que os americanos ganhassem reputação de ultrapassar Hitler em atrocidade”[14].
            Em muitos aspectos, Hiroshima representa um nível superior de modernidade, tanto pela novidade científica e tecnológica representada pela arma atômica, quanto pelo caráter ainda mais distante, impessoal, puramente “técnico” do ato exterminador: pressionar um botão, abrir a escotilha que liberta a carga nuclear. No contexto próprio e asséptico da morte atômica entregue pela via aérea, deixou-se para trás certas formas manifestamente arcaicas do III Reich, como as explosões de crueldade, o sadismo e a fúria assassina dos oficiais da SS. Essa modernidade se encontra na cúpula norte-americana, que toma – após ter cuidadosa e racionalmente pesado os prós e os contras – a decisão de exterminar a população de Hiroshima e Nagasaki: um organograma burocrático complexo, composto por cientistas, generais, técnicos, funcionários e políticos tão cinzentos quanto Harry Truman, em contraste com os acessos de ódio irracional de Adolf Hitler e seus fanáticos.
            No decurso dos debates que precederam a decisão de lançar a bomba, certos oficiais, como o general Marshall, declaram suas reservas à medida em que eles defendiam o antigo código militar, a concepção tradicional da guerra, que não admitia o massacre intencional de civis. Eles foram vencidos por um ponto de vista novo, mais “moderno”, fascinado pela novidade científica e técnica da arma atômica, um ponto de vista que não tinha nada a ver com códigos militares arcaicos e que não se interessava senão pelo cálculo de lucros e perdas, isto é, em critérios de eficácia político-militar[15]. Seria necessário acrescentar que um certo número de cientistas que tinham participado, por convicção anti-fascista, nos trabalhos de preparação da arma atômica, protestaram contra a utilização de suas descobertas contra a população civil das cidades japonesas.
            Uma palavra sobre o Goulag stalinista: se há muito em comum com Auschwitz – sistema concentracionário, regime totalitário, milhões de vítimas – ele se distingue pelo fato de que o objetivo dos campos soviéticos não era o extermínio dos prisioneiros, mas sua brutal exploração como força de trabalho escrava. Em outras palavras: pode-se comparar Kolyma e Buchenwald, mas não o Goulag e Treblinka. Nenhuma contabilidade macabra – como aquela fabricada por Stéphane Courtois e outros anticomunistas profissionais – pode apagar essa diferença.
            O Goulag era uma forma de barbárie moderna na medida em que era burocraticamente administrado pelo Estado totalitário e colocado a serviço de projetos stalinistas faraônicos de “modernização” econômica da União Soviética. Mas ele se caracteriza também por traços mais “primitivos”: corrupção, ineficácia, arbitrariedade, “irracionalidade”. Ele se situa, por essa razão, em um degrau de modernidade inferior ao sistema concentracionário do III Reich.
            Enfim, a guerra americana no Vietnã, atroz pelo número de vítimas civia exterminadas pelos bombardeios, o napalm ou as execuções coletivas, constitui, em vários aspectos, uma intervenção extremamente moderna: fundada sobre uma planificação “racional” – com a utilização de computadores e de um exército de especialistas – ela mobiliza armamentos muito sofisticados, na ponta do progresso técnico dos anos 60 e 70: B-52, napalm, herbicidas, bombas de fragmentação, etc.[16]
            Essa guerra não foi um conflito colonial como os outros: basta lembrar que a quantidade de bombas e explosivos lançados sobre o Vietnã foi superior àquela utilizada por todos os beligerantes durante a Segunda Guerra Mundial! Como no caso de Hiroshima, o massacre não era um objetivo em si, mas um meio político; e se a cifra de mortos é bem superior àquela das duas cidades japonesas, não se encontra no Vietnã aquela perfeição da modernidade técnica e impessoal, aquela abstração científica da morte que caracteriza a “morte atômica”[17].
            A natureza contraditória do “progresso” e da “civilização” moderna se encontra no coração das reflexões da Escola de Frankfurt. Em A Dialética do Iluminismo (1944), Adorno e Horkheimer constatam a tendência da racionalidade instrumental de se transformar em loucura assassina: a “luminosidade gelada” da razão calculista “carrega a semente da barbárie”. Em nota redigida em 1945 para Mínima Moralia, Adorno utiliza a expressão “progresso regressivo” tentando dar conta da natureza paradoxal da civilização moderna[18].
            Essas expressões, entretanto, ainda são tributárias, apesar de tudo, da filosofia do progresso. Na verdade, Auschwitz e Hiroshima não são em nada uma “regressão à barbárie” – ou mesmo uma “regressão”: não há nada no passado que seja comparável à produção industrial, científica, anônima e racionalmente administrada da morte em nossa época. Basta comparar Auschwitz e Hiroshima com as práticas guerreiras das tribos bárbaras do século IV para se dar conta que eles não têm nada em comum: a diferença não é somente na escala, mas na natureza. É possível comparar as práticas mais “ferozes” dos “selvagens” – morte ritual do prisioneiro de guerra, canibalismo, redução de cabeças, etc. – com uma câmara de gás ou uma bomba atômica? São fenômenos inteiramente novos, que não seriam possíveis a não ser no século XX. As atrocidades de massa, tecnologicamente aperfeiçoadas e burocraticamente organizadas, pertencem unicamente à nossa civilização industrial avançada. Auschwitz e Hiroshima não são mais “regressões”: são crimes irremediavelmente e exclusivamente modernos.
            Existe, todavia, um domínio específico da “barbárie civilizada” em que se pode efetivamente falar de regressão: a tortura. Como destaca Eric Hobsbawm em seu admirável ensaio de 1994, Barbárie: um guia para o historiador:

A partir de 1782 a tortura foi formalmente eliminada do procedimento judiciário dos países civilizados. Em teoria, ela não era mais tolerada nos aparelhos coercitivos do Estado. O preconceito contra essa prática era tão forte que ela não pôde retornar após a derrota da Revolução Francesa, que a havia seguramente abolido. (...) Pode-se suspeitar que nos redutos da barbárie tradicional, que resistem ao progresso moral – por exemplo, as prisões militares ou outras instituições análogas – ela de fato não desapareceu.[19]

                Ora, no século XX, sob o fascismo e o stalinismo, nas guerras coloniais – Argélia, Irlanda, etc. – e nas ditaduras latino-americanas, a tortura é de novo empregada em grande escala. Mais recentemente, vimos a degradação de seres humanos sob tortura às ordens de um dos “pilares” da moderna civilização, os Estados Unidos: as deprimentes imagens da prisão de Abu Graib, no Iraque, e mesmo o arbitrário tratamento dado a prisioneiros na base norte-americana de Guantánamo.
            Os métodos são diferentes – a eletricidade substitui o fogo e os torniquetes – mas a tortura de prisioneiros políticos tornou-se, no curso de século XX e início do XXI, uma prática rotineira – mesmo se não-oficial – de regimes totalitários, ditatoriais e mesmo, em certos casos, “democráticos”. Nesse caso, o termo “regressão” é pertinente, na medida em que a tortura era praticada em inúmeras sociedades pré-modernas, e também na Europa, da Idade Média ao século XVIII. Um uso bárbaro que o processo civilizador parecia ter suprimido no curso de século XIX voltou no século XX, mas sob uma forma mais “moderna” – do ponto de vista das técnicas – mas não menos desumana.
            Levar em conta a barbárie moderna do século XX exige o abandono da ideologia do progresso linear. Isso não quer dizer que o progresso técnico e científico é intrinsecamente portador de malefício – nem tampouco o inverso. Simplesmente a barbárie é uma das manifestações possíveis da civilização industrial/capitalista moderna – ou se sua cópia “socialista” burocrática. Não se trata de reduzir a história do século XX a seus momentos bárbaros: essa história conheceu também a esperança, as sublevações dos oprimidos, as solidariedades internacionais, os combates revolucionários: México, 1914; Petrogrado, 1917; Budapeste, 1919; Barcelona, 1936; Paris, 1944; Budapeste, 1956; Havana, 1959; Paris, 1968; Lisboa, 1974; Manágua, 1979; Chiapas, 1994, foram alguns dos momentos fortes – mesmo se efêmeros – dessa dimensão emancipadora do século XX. Eles constituem pontos de apoio preciosos à luta de gerações futuras por uma sociedade humana e solidária.


Referências Bibliográficas:
[1] ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro,
[2] ELIAS, Norbert. La Dynamique de l'Occident. Paris, Calmann-Lévy, 1975, p.181. A referência ao combate abissínio soa estranha no momento em que a Etiópia combatia pela sua liberdade contra a invasão colonial do fascismo italiano, portador de uma pretensa missão "civilizadora".

[3] MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, Vol. I, pp. 557-58.
[4] MARX, Karl. Salário. Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p. 265.
[5] LUXEMBURGO, Rosa. A Crise da Social-Democracia. Lisboa, Editorial Cervantes, 1988, pp. 35-8.
[6] KAFKA, Franz. La Colonie Pénale. Paris, Nouveles Letres, 1971, pp. 113-181.
[7] BENJAMIN, Walter. “O Surrealismo. O ultimo instante da inteligência européia”. In: Mito e Violência. Lisboa, Editorial Inquérito, 1971, p. 312.
[8] Lembremos que o grande truste químico IG Farben não somente utilizou massivamente a mão-de-obra escrava em Auschwitz, mas também produziu o gás Ziklon B, que servia para o extermínio das vítimas do sistema de campos de concentração.
[9] BAUMAN, Zygmunt. Modernity and the Holocaust. Londres, Polity Press, 1989, p. 15.
[10] Citado por Zygmunt Bauman, Op. Cit. p. 71.
[11] TRAVERSO, Enzo. L’Histoire Dechirée. Essai sur Auschwitz et les intellectuels. Paris, Cerf, 1997.
[12] Sobre este assunto, remeto às excelentes considerações de Enzo Traverso no artigo “La Singularité de Auschwitz. Hypothèses, Problèmes et Dérivations de la Rechèrche Historique”. In: Pour une Critique de la Barbarie Moderne. Ecrits sur l´histoire des Juifs et de l´antisémitisme. Lausane, Éditions Page Deux, 1997.
[13] BERNSTEIN, Barton J. “The Atomic Bombings Reconsidered”. In: Foreign Affairs, fevereiro de 1995. Citado a partir de arquivos recentemente abertos.
[14] Ibid, p. 146.
[15] Sobre as reservas de Marshall, cf. Barton J. Berstein, Op. Cit., p. 143.
[16] De fato, é inteiramente racional, se a “razão” significa racionalidade instrumental, aplicar a força militar norte-americana, os B-52, o napalm e todo o resto, no Vietnã “sob dominação comunista” (claramente um “objeto indesejável”), como o “operador” para o transformar em objeto desejável”. WEISENBAUM, Joseph. “Computer, Power and Human Reason”. In: From Judgement to Calculation. S. Francisco, W.H. Freeman, 1976, p. 252.
[17] Outras guerras coloniais tiveram lugar no século XX – na própria Indochina, na Argélia, na África colonial portuguesa, etc. – mas nenhuma delas atingiu o grau de modernidade como a do Vietnã. Em comparação, aquelas parecem arcaicas, primitivas.
[18] ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. La Dialectique de la Raison. Paris, Gallimard, 1974, p. 48 e ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Paris, Payot, 1983, p. 134.
[19] HOBSBAWM, Eric J. Barbárie: um guia para o historiador. Lisboa, Publicações Europa-América, 1997, p. 259-263.

Victor Tempone
Mestre em História Política (UERJ), Especialista em Relações Internacionais (UERJ), Professor e Pesquisador na UERJ e Professor na FAFIMA e e na rede do município de Macaé.
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Macaé / Universidade Estadual do Rio de Janeiro