quinta-feira, 28 de julho de 2011

UM JAPÃO QUE NÃO VINGOU

No final de 1907, um grupo de lavradores despertava curiosidade geral entre os moradores de Conceição de Macabu, distrito de Macaé, no interior do estado do Rio de Janeiro. Fisicamente diferentes, com roupas e costumes exóticos, língua incompreensível, eles trabalhavam duro nos limites da Fazenda de Santo Antônio, uma das maiores da região.

Eram todos japoneses, e ninguém jamais vira um japonês em carne e osso por ali. Ao contrário da maioria dos imigrantes que chegaram ao Brasil naquele período, não eram simples meeiros ou empregados de um latifúndio. Vieram comercializar por conta própria o que conseguissem plantar e colher, num sistema em que o Estado entrava com a terra e eles, com a produção. O grupo não era diferente só na origem asiática ou na forma pela qual tomaram posse da antiga fazenda. Foram protagonistas do primeiro projeto de colônia agrícola tocado com mão-de-obra nipônica no Brasil. Isto se deu sete meses antes da chegada a São Paulo do navio Kasato Maru, tido como marco oficial do início da imigração japonesa no país.

O destino desses imigrantes foi determinado pelo momento político e econômico que vivia seu país de origem. O progresso e a acelerada modernização experimentada durante a chamada Era Meiji — reinado do imperador Meiji Tenno (1868-1912), Mutsuhito para os ocidentais — e as vitórias militares contra a China (1894-1895) e a Rússia (1904-1905) haviam conferido ao Japão uma sensação de superioridade em relação aos outros países. Os japoneses sentiam-se imbuídos da missão de civilizar o mundo, e um bom projeto era conquistar as Américas. Não pela guerra, mas pelo exemplo e pela força de trabalho. Foi nesse clima de euforia que jornais de Tóquio divulgaram relatórios do ministro Sigimura (1848-1906), embaixador japonês no Brasil, discorrendo sobre o futuro da cafeicultura e a escassez de mão-de-obra nas lavouras daqui.

Os relatórios chamaram a atenção de Saburo Kumabe (1865-1926), que se transformaria em personagem-símbolo dessa era. Formado em Direito, Kumabe era juiz em Kagoshima. Apesar da vida estabilizada, resolveu deixar tudo e seguir para o Brasil, onde, proclamava, os súditos do império japonês deveriam demonstrar sua superioridade. Pediu aos governadores provinciais de seu país que lhe enviassem jovens com disposição de emigrar. Aos 41 anos, Kumabe embarcou para o Brasil em maio de 1906, no navio Sanuki-maru, acompanhado da esposa, Iho, do filho, Keiichi, e das filhas, Mitsu, Teru, Toki e Hide, além de outros japoneses.

Inicialmente, as coisas não deram certo para Kumabe e seu grupo, que acabou se dispersando. Ele e sua família tiveram de trabalhar como enroladores de cigarros em São Paulo. Até que, em 1907, surgiu a oportunidade que esperavam: foram contatados por Ryo Mizuno (1860-1951), que presidia a Companhia de Imigração Japonesa. Mizuno estava interessado em alocar no Brasil imigrantes de seu país. Sabendo dos projetos de Kumabe, propôs-lhe a formação de uma colônia agrícola no interior do estado do Rio de Janeiro. Kumabe levaria para lá seus parentes e mais um grupo de imigrantes. Travava-se de um projeto inédito no Brasil. E, sobretudo, dificultoso, já que os japoneses não tinham familiaridade com o clima nem com os costumes brasileiros.

O local da empreitada foi definido a partir de um acordo com o governo do Rio de Janeiro. Em 3 de agosto de 1907, o jornal O Lynce informou que Mizuno visitara Macaé com um grupo de imigrantes para conhecer a Fazenda Santo Antônio, em Conceição de Macabu. “A fazenda, adquirida pelo governo do estado, se for aprovada pelos visitantes, será escolhida para receber colonos de origem japonesa”, publicou O Lynce. Mizuno, ao que parece, gostou do lugar. A família Kumabe, seguida de Ryoichi Yasuda, Shinkichi Arikawa e Tamezo Nishizawa, chegou a Macaé no dia 29 de novembro, fato também noticiado por O Lynce, na edição do dia 30: “Esses imigrantes”, escreveu o repórter, “são os primeiros que vão se localizar na Fazenda Santo Antônio, recentemente adquirida pelo governo fluminense para a instalação de uma colônia japonesa, conforme contrato celebrado com a Cia. de Imigração Japonesa”.

No dia 1º de dezembro, os imigrantes começaram a fazer um levantamento da propriedade. Era um latifúndio de mais de 3.200 hectares, com mananciais de água, florestas, paióis de milho e café, moinhos de farinha de mandioca e milho, estábulo, casa-grande e senzala do tempo da escravidão, capela e alambique. À primeira vista, uma propriedade com muitas condições favoráveis ao progresso de uma colônia agrícola. E eles puseram-se a trabalhar com o afinco e a coragem necessários para prosperar em um país estranho, cuja língua não entendiam. Em matéria de coragem, aliás, tinham tradição. Alguns imigrantes vinham de conhecidos clãs de guerreiros. A senhora Iho, esposa de Kumabe, descendia de uma família de samurais: os Tsuneoka, da província de Kanagawa. Outro imigrante descendente de samurais era Yusabugo Yamagata (1860-1924), da tradicional família Kobayashi, da província de Nagasaki.

A presença dos orientais logo chamou a atenção dos moradores de Conceição de Macabu, a vila mais próxima, com pouco mais de mil habitantes, servida na época pelo ramal ferroviário da Leopoldina Railway Company. Depoimentos colhidos durante recente pesquisa no local mostram o quanto a população de fato os estranhou. Dona Maria Magnólia da Conceição (1890-1999), filha e neta de feitores de escravos, comentou certa vez a respeito dos hábitos para ela exóticos dos japoneses. Comiam arroz e peixe em tigelas e se vestiam de maneira diferente. As crianças da colônia, para estudar, andavam até oito quilômetros por dia, cruzando pântanos e percorrendo trilhas desertas, até a escolinha de uma fazenda da região. O historiador Herculano Gomes da Silva, cujo pai tinha um comércio de secos e molhados no lugar, relembra histórias que os mais velhos contavam, segundo as quais japoneses eram vistos com freqüência circulando pela vila, vendendo arroz e artesanato e adquirindo mercadorias, como sal, querosene, ferramentas, tecidos, agulhas e linhas.

A colônia produziu leite e derivados, além de milho, feijão e arroz. Este era plantado nas inúmeras várzeas da propriedade, chegando a duas colheitas por ano. Com o passar do tempo, porém, os imigrantes foram desistindo do projeto. Outros japoneses foram enviados ao local pela Companhia de Imigração, mas também abandonaram a propriedade. A colônia acabou em 1912, quando Saburo Kumabe e sua família partiram. A exaustão do solo, a falta de apoio governamental e o desinteresse da Companhia de Imigração Japonesa levaram ao fracasso da experiência.

Mas não só isso. Vários colonos padeceram com a malária e houve crônicos ataques de saúvas às plantações. “O fato de ele [Kumabe] ter permanecido durante cinco anos, até o ano de 1912, nessa árida Fazenda Santo Antônio, a meu ver sem nenhum futuro e infestada de saúva e malária, deixa-me admirado pela perseverança, que a mim parece até temerária”, escreveu Teijiro Suzuki, em Umoreyuku Takujin no Sokuseki (“Rastros dos pioneiros que estão se apagando”), de 1969.

O Jornal Paulista, em reportagem de 1955, não poupa críticas a Ryo Mizuno, o presidente da Companhia de Imigração Japonesa, considerado um dos grandes responsáveis pela imigração maciça de japoneses para o Brasil. Segundo o periódico, Mizuno, como parte de um esquema de propaganda para atrair mais imigrantes de seu país, “publicou fotos da família Kumabe na revista japonesa Taiyo, apresentando-os como imigrantes japoneses bem-sucedidos no Brasil”. Mas, na prática, abandonou a colônia à própria sorte.

Diante de tamanhas dificuldades, restou a Saburo Kumabe abandonar o projeto e empenhar-se por um futuro digno para seus filhos, o que, de certa forma, conseguiu. Duas de suas filhas se formaram professoras em 1918. Um ano depois, naturalizaram-se brasileiras para serem efetivadas como titulares. Foram as primeiras japonesas a se formar em uma escola secundária no Brasil. Outro pioneiro da Santo Antônio, Ryoichi Yassuda (1879-1971), também viu seus esforços refletidos nos descendentes. Seu filho, Fábio Yassuda, foi o primeiro nissei a ocupar um ministério: o da Indústria e Comércio, no governo Médici, em 1969.

O sonho de criar no exterior um mundo novo, provando que o desenvolvimento da Era Meiji se explicava pela tenacidade e pelo talento de uma raça de homens superiores, caiu por terra. A realidade mostrou aos imigrantes que não bastava a vontade de vencer. Mas a história não termina aí. Em 1908, outro grupo de japoneses chegou ao porto de Santos a bordo do Kasato Maru. Eram 781 imigrantes. Como os da Fazenda Santo Antônio, também vieram para trabalhar no campo. Dessa vez, com reais possibilidades de êxito.



Saiba Mais - Livros:

CLAVELL, James. Xogum – A Gloriosa saga do Japão. Rio de Janeiro: Editora Record, 1996.
LESSER, Jeffrey. Negociando a Identidade Nacional: Imigrantes, Minorias e a Luta pela Etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2001.
SAITO, Hiroshi. A Presença Japonesa no Brasil. São Paulo: TA Queiroz/Edusp,1980.

Saiba Mais - Filmes:

“Gaijin – Os caminhos da liberdade” (dir. Tizuka Yamasaki). Brasil, 1980. Embrafilme.

“Gaijin – Ama-me como sou” (dir. Tizuka Yamasaki). Brasil, 2005. Globo Vídeo.

Saiba Mais - Sites:

www.centenario2008.org.br

www.fjsp.org.br/guia/cap01_a3.htm

www.imigracaojaponesa.com.br

ARTIGO DA REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL

MARCELO ABREU GOMES
Professor de História e Manifestações da Cultura Popular das redes pública e privada de ensino de Macaé e Conceição de Macabu.
Autor do livro Antes do Kasato Maru (Gráfica Macuco, 2008).

segunda-feira, 25 de julho de 2011

ENTREVISTA COM OS PROFESSORES VICTOR TEMPONE E OSWALDO MUNTEAL: DOCUMENTAÇÃO DA DITADURA MILITAR NO BRASIL.



Trabalho realizado para a disciplina Jornalismo na Internet da Uerj. Os professores são do NIBRAHC (Núcleo de Identidade Brasileira e História Contemporânea) situado na Uerj.

Caso não consiga visualizar o vídeo, clique neste link.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

DE BAR EM BAR...


Mesa de bar é lugar para tudo que é papo de vida rolar
Do futebol até a danada da tal inflação
É coração, fantasia e realidade
É o ideal paraíso adonde nóis fica a vontade
  
Mesa de bar é cerveja suada, matando a pau o calor
                                                   
                                                 Vamos cantar aquela cantiga que fala da luta e do amor
                                                  Mas antes brindar em homenagem àqueles que já não vêm mais
                                                  Saúde pra gente, moçada, que a gente merece demais

                                                  Em torno de um copo a gente inventa um mundo melhor
                                                  A dona birita levanta a moral de quem tá na pior
                                                  A água da mágoa se enxuga no pano daquela toalha
                                                  Pra’cabar com a tristeza, este remédio não falha

                                                  Na mesa de um bar todo mundo é sempre o maior
                                                  Todo mundo derrama as tintas da sua alegria
                                                  Copos batendo na mesa da rapaziada
                                                  Se bem que a gente não esquece que a barriga anda meio vazia
                                                  É que mesa de bar é onde se toma um porre de liberdade
                                                  E companheiros em pleno exercício de democracia
                                                                                                                 Mesa de Bar
                                                                                                                  Gonzaga Jr.

                                                                 




1        Introdução.

                            Hoje eu acordei sereno

                                      Era bem de manhã

                                  Fora irradiava a aurora
                                  Como um leque dourado
                                   Na janela o canto de um galo
                                   Cantava outra canção
                                                           A Cor Mais Bonita
            Abidoral Jamacaru   -   Chico Chaves.

          Bar, botequim, instituição secular que já recebeu ou recebe diferentes designações, tem obtido peculiar apreço por parte de personagens que, na literatura e na música, por exemplo, têm enaltecido as suas virtudes. Lima Barreto, João do Rio, Paula Ney, Sidney Miller, Chico Buarque de Holanda, Luiz Gonzaga Júnior, Renato Teixeira, João Nogueira, Paulo César Pinheiro, Moacir Luz, Aldir Blanc, Jorge Amado, Noel Rosa... são alguns que, entre outros, captaram a magia e a sensibilidade do bar, outorgando-lhe  qualidades positivas nem sempre reconhecidas.

As definições encontradas para Bar ou Botequim de tão incompletas e desajustadas à realidade, sugerem o reconhecimento de algo qualquer, sem alma, sem função maior na e para a sociedade. É como perceber a rua qualificando-a simplesmente de “... o caminho criado de casas, muros ou árvores numa povoação.” Raciocinando-se desta maneira, João do Rio jamais poderia ter criado A Alma Encantadora das Ruas, onde a transformou de “Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia” (1) em algo que “... faz as celebridades e as revoltas” (2); que “criou o garoto” (3), eternizada na existência do indivíduo, como comprova o próprio João do Rio, no seguinte registro:

“Um cavalheiro notável, ao entrar comigo certa vez na Rua Senador Dantas não se conteve:
 - É impossível passar por aqui sem lembrar que a velhice começa a chegar. Quando vim da província esta rua tinha apenas duas casas no antigo jardim do Convento, e eu tomava chopps no Guarda Velha a três vinténs. “(4)
                                 
                                 
            Nota-se, aí, a perfeita sincronia entre a rua e o bar, ambos parecem ter o mesmo significado, já que os  chopps  não foram esquecidos e sim associados à rua.

            Assim como João do Rio nos impressiona com a sua Rua, Lima Barreto dificilmente poderia ter incorporado a si o Bar como tão familiar e tão íntimo; enxerga-o, mesmo disfarçado de confeitaria, como a fronteira simbólica entre os privilegiados e os despossuídos. Ele, efetivamente, viveu a dicotomia entre a Confeitaria Colombo, trampolim dos novos, em oposição à Garnier, reduto dos consagrados. Singular na sua época, o escritor, residente em Todos os Santos, já fazia referência ao subúrbio, seus bares e boêmios, aludindo ao Méier, quando afirma:

 “... É o Méier o orgulho dos subúrbios e dos suburbanos. Tem confeitarias decentes, botequins freqüentados; tem padarias  que fabricam  pães, estimados e procurados; tem dois cinemas, um dos quais funciona em casa edificada adrede; tem circo-teatro, tosco, mas tem casas de jogo patenteadas  e garantidas pela virtude, nunca posta em dúvida, do Estado, e tem boêmios, um tanto de segunda mão; e outras perfeições urbanas, quer honestas, quer desonestas.
 As casas de modas, pois as há também, e de algum aparato, possuem nomes ‘ chics ‘, ao gosto da Rua do Ouvidor. Há até uma ‘ Notre Dame ‘, penso eu. ”(5)

A alma do botequim motivou-me a tentar caminhar por rua tão sinuosa, tão atraente..., o espaço que, ao mesmo tempo, abriga tragédia e felicidade; encontros e desencontros, encantos e desencantos. A vida, a perpetuar a tradição de uma determinada região geográfica, da geografia da alma, do corpo, da cidade, da ideologia, da sensibilidade, do compromisso, da coerência...

O Botequim?
Conheci-o ainda menino, bem menino – é claro – de uma forma desprovida de bom senso. Para mim ele era apenas o balcão, as mesas, a cerveja que atraía o meu pai, cardiopata, que não poderia, então, freqüentá-lo ( a ). Espaço sagrado - profano, tinha eu a função de profaná-lo e imagino, hoje, como meu pai reagia intimamente a estes chamados, heréticos e de mal gosto, porque o botequim  não é / era apenas o local onde se bebe e sim aquele em que se aprende a viver, que “ cria o garoto “, como dizia João do Rio, em relação à rua. Existe aí um aprendizado contínuo – como um processo de socialização  -  o qual,  se um dia termina, só pode ser no infinito, como aquele axioma segundo o qual duas retas se encontram em um mesmo infinito ( por que pensar que só existe um infinito ? ), que é cada um de nós.



1          A Mocidade.

                          Céu é redoma da terra
                                   olho a desvendar o fundo
                                   de cada grão de poeira
                                   perdido na imensidão
                                   amor explosão sem segredo
                                   a cor mais bonita é bem cedo
                                   a história que nasce do medo
                                   não abre nenhum coração
                                  A Cor Mais Bonita.
                                            Abidoral Jamacaru/Chico Chaves.
                                                                       
          O Bar cria o garoto e facilita - hoje percebo – a transmissão da história, das tradições, do bairro, da universidade, da comunidade...

          Quando a nossa urbe possuía um botequim em cada esquina e o índice de criminalidade era reduzido numericamente e qualitativamente, portanto os indivíduos eram saudáveis (explico – hoje, encontramos uma farmácia em cada esquina, a população está doente ),  ao final do futebol ocorria a reunião no botequim da esquina. Ali, adultos, adolescentes e crianças reuniam-se para conversar e ou apenas ouvir coisas aparentemente vazias. Não raro vinham à tona os casos, as histórias que compunham a tradição do bairro, os seus tipos característicos, sua evolução ou decadência...

No subúrbio, escamoteado paulatinamente dos seus espaços tradicionais e, apesar disso, por não tê-los perdido totalmente, ainda mantém boa parte das suas raízes, era comum encontrar-se, no botequim, o grupo de amigos que se faziam acompanhar dos seus filhos e demais iniciantes. Eles escutavam os comentários e aprendiam a essência do bairro, da sua gente, das mudanças provocadas pela selvageria do progresso, causadora das reformas que tanto nos atemorizam. Assim, a camaradagem se instalava e era preservada, inclusive no colégio, no curso secundário e, mais tarde, na universidade, no caso daqueles que conseguiam ultrapassar a violência do vestibular.

Acerca do bar e suas contradições, antecipo-me a alguma crítica ácida, recorrendo ao sempre moderno Lima Barreto, autor de um pequeno / grande texto, onde é evidente a contemporaneidade do que não é contemporâneo e a dialética bem explicitada, quando o genial mulato de Todos os Santos me auxilia a caminhar:      “É curioso comparar a maneira com que Debret pinta os negros e os brancos. O ponto de verdade dos dois...”(6)

          Estes pontos de encontro resistem ainda, embora sejam mais numerosos nos morros, nas famosas “tendinhas”, e na Baixada Fluminense, que por estar recebendo com apreciável intensidade o influxo do “progresso” – os tais “shoppings” – tendem a perder tão preciosa “escola de vida” , substituída gradativamente pelas lojas que impingem, com propaganda eficaz,  a “refeição rápida”, ou seja, exercem a função do sistema de crédito nas universidades, que conseguiu eliminar a turma e, portanto, reduzir a camaradagem.

            Entendo que, em comunidades situadas em áreas periféricas às grandes cidades, os problemas gerados pelos novos centros comerciais são mais graves, pois provocam, com maior rapidez, a desintegração do pequeno comércio, dos grupos de indivíduos, inclusive os de idade, acentuando-se aí o desemprego e a descaracterização da comunidade. Quase nada é preservado.

        Período marcante em que o botequim se consolida em nossa existência e não mais se retira, é quando passamos a vivenciar a inserção nas discussões políticas – ideológicas, intermináveis, eivadas de divergências, por isso mesmo pródigas na aquisição de conhecimentos. Agora, com os camaradas preocupados com o aprofundamento das ilógicas diferenças que sempre marcaram a nossa sociedade. Aí é traçado o caminho do qual muitos jamais se afastarão, mesmo com as pesadas injunções que nos cercam a todo  momento. O prédio, então, perderá, de maneira vigorosa, a ( in ) definição da sua arquitetura visível, o gosto duvidoso da sua decoração, e receberá novos adeptos para a  confraria da religião, com outro olhar, aquele que busca a solidariedade entre os seres humanos em uma reestruturação  mental constante dos seus membros, como uma equipe a se renovar com a naturalidade que a utopia impõe, misto de ética, solidariedade e esperança daqueles que percebem que as mudanças não dependem de reformas constitucionais e sim de rupturas responsáveis  para  adquirirmos a “ doce prisão da liberdade.”
Não é nosso objetivo nominar bares e sim tentar apreender a sua magia; quem não se lembra dos “papos”, alguns apenas para “matar o tempo”, outros singularmente austeros, acompanhados do “prato do dia” no “pé sujo” tradicional? Neste caso, cada um de nós recordará de nomes e mais nomes, como o compositor Guilherme de Brito que, por mais esquecido que esteja, recupera perfeitamente o Cabaret do Diabo e o Bar do Gouvêa, por exemplo. (7) No primeiro, ele encontrava-se com Nelson Cavaquinho, seu principal parceiro musical; no segundo, podia aproximar-se do genial Pixinguinha.

1        Maturidade.
                          Era um tempo de bandas e disparadas
                                   De vândalos nas madrugadas
                                   De alegrias e travessias e correrias
                                   Desesperadas

                                   Apesar do nervosismo
                                   Resta um pouco de cinismo

                                   Dois dedos, dois dedos, dois dedos
                                   De uma bebida forte
                                   Dois dedos, dois dedos, dois dedos
                                   Um da vida, outro da morte

                                   Apesar do nervosismo
                                   Resta um pouco de cinismo
                                               Conhaque.
                                                               Carlinhos Vergueiro – J. Petrolino.

Como em Cinema Paradiso, continuamos o nosso percurso, agora na maturidade. Como nós, o Botequim também amadurece, ocorrendo, às vezes, a troca de endereço, uma vez que, para cada fase da nossa vida, habitualmente, dá-se a peculiar fidelidade à traição, isto é, seremos sempre fiéis até que troquemos de endereço, mantendo intacta a Instituição. É verdade que às vezes, por respeito à tradição, façamos frugais trocas. Assim, ficam na memória o Bar do Alberto, reduto da “turma do Cairu”, ou a “dobradinha do Bar do Jorge”; o “arrumadinho do Bar do Adilson”, a “sopa de siri do Ritinha”... ou a cerveja gelada, acompanhada da conversa compromissada do “ Loreninha”.
O que comanda o ir e vir é o estilo do assunto a ser tratado e muito se tem projetado a partir do Botequim, pelo seu perfil democrático, caso saibamos escolhê-lo, onde é fácil arquitetar planos que muitas vezes nunca serão executados, estratégias políticas que serão encaradas como “coisas de pessoas que não têm o que fazer”, ou busca de atalhos, alternativas que raramente serão levadas a sério pelos que se pretendem conhecedores e donos dos nossos caminhos.
 Quantos ficaram pelo caminho no Botequim N° 1 (8) provocando o Pois É Pra Que, (9), ou os Bares da Cidade (10)?  Quantas vezes o Brasil foi tornado igualitário, fraterno, justo e solidário a partir de receitas já preparadas, todavia nunca executadas, em reuniões onde a cerveja é apenas um acessório para a consecução da justiça social?
- A revolução deve ser acompanhada pela recuperação salarial como ponto de partida!“
 “- Não, ela deve estar associada a um Planejamento que privilegie o aspecto educacional, além da recuperação econômica.”

Incontáveis foram e são as vezes que tal discussão consumia horas e horas, dependendo da “linha” defendida. Não havia conclusão e, como em Sinal Fechado (11), no próximo encontro que poderia não existir, pela não ruptura com o modelo de sociedade imposto, o assunto emergiria novamente. É justo resgatar que a ausência de solução nunca foi empecilho às novas e longas “pelejas”. Estas questões parecem ser contemporâneas para novas gerações, (in) felizmente, talvez, pela nossa própria incapacidade para atentarmos para um melhor caminho.
Mais uma vez, a (pré) visão de Lima Barreto nos dá uma lição, através de um texto bastante elucidativo: Rapaduras Gostosas.

“Na minha vizinhança, no pacato Todos os Santos, nas proximidades de Inhaúma, a longínqua, dias ou semanas antes do Carnaval, alguns meus conhecidos e amigos de modesta condição, que me dão a honra de ouvir, nas vendas e botequins, as minhas prédicas sociais e políticas, fundaram um cordão, rancho ou bloco, que chamaram ‘Rapaduras Gostosas’. Eu não sei bem porque quiseram tal nome, mais nada objetei-lhes e calei toda a crítica irreverente ou tola a semelhante manifestação de arte popular. Diabos! Eu sou povo também; não descendo, como o presidente, de fidalgos flamengos, que ficaram no Brasil e abandonaram os seus patrícios quando eles foram batidos pelas hostes  pernambucanas de André Vidal de Negreiros, Camarão e Henrique Dias. Sou essencialmente  homem do povo e criticar manifestações artísticas parece pretensão e soberba. Guardei a crítica e convenci-me que podia haver rapaduras amargas.
Tendo tomado essa precaução, fui a uma das sessões de início do bloco e assisti-a do início ao fim. A presidi-la estava meu bom camarada Manuel Parafuso, artista pintor de liso, muito consagrado pelas famílias abastadas da redondeza; o secretário Miguel Barbalho, um rapaz acobreado da mais perfeita aparência caprina; e outros cujos nomes não me recordo.
Pois bem, todos esses homens humildes de condição e instrução guiaram os trabalhos da assembléia com uma perfeição extremamente parlamentar, a ponto de, se pudessem lá estar, causar inveja ao Senhor Andrade Bezerra ou ao Senhor Torquato Moreira. “(12)

1        Continuidade?
                          E os projetos
                                   tolos combinados
                                   perecerão nas margens do amanhã
                                   uma tontura solta na cabeça
                                   um olho em Deus
                                   e o outro em satã
                                   e quando o sol raiar
                                   desentendido
                                   eu vou ferir a vista na manhã
                                   e olharei pra quem sai pro trabalho
                          com os olhos feito os olhos de uma rã
                                      Sentimental Eu Fico.
                                                   Renato Teixeira.

Abordar a continuidade torna-se questão extremamente difícil. Penso na República dos Estados Unidos da Bruzudanga  onde :

                            Não há homem influente que não tenha...parentes ocupando cargo no Estado; não há lá  político
influente que não  se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. “
                                                                   “ No entanto a terra vive na pobreza ... “ (13)

          A nossa conversa, a viagem continua hoje, ocorre no momento das reformas. Passamos a saber que nesta República – que não é a da Bruzudanga – devemos todos trabalhar sempre, cada vez mais,  e caso, apesar das péssimas condições de alimentação, transporte, moradia, saneamento, saúde, educação etc, consigamos continuar sobrevivendo, apesar de termos contribuído para a (in) Previdência, deveremos continuar a contribuir após a aposentadoria pois esta, em situação de insolvência, necessita que os “vagabundos “ continuem a sustentá-la.

         Refletindo acerca do novo governo brasileiro, em uma tarde qualquer, numa mesa específica do “Faria”, recordo a profecia de Lima Barreto, assinalada abaixo, sobre Clara dos Anjos.(14)
                                                                                    
                                       “ Época : 1874 a 1935.
                                      Nasceu ........................................  1868.
                                      Morte do pai ................................  1887.
                                      Deflorada ....................................  1888 ( 12  ou  13  de maio ).
                                        à luz ......................................  1889.
                                      Deixada ........................................ 1892.
                                      Casada ......................................... 1899.
                                      Amigada de novo ......................... 1900.”

          Clara foi seduzida em 13 de maio, dia a Abolição da Escravatura.

          Deixo aos leitores as conclusões. Temo pela idéia segundo a qual, como Clara dos Anjos, deflorada em 13 de maio de 1888, as nossas dificuldades se intensifiquem quando as supúnhamos afastadas. Infelizmente os “iluminados“ parecem esquecidos das suas origens, das suas raízes, dos seus compromissos.
A sensação é de grave, mas serena, necessidade de reação ante desastres tão significativos. Fico imaginando, com algum desdém, a possibilidade dos políticos, excetuando alguns poucos, não freqüentarem botequins, tendinhas ou biroscas, a não  ser durante a época eleitoral, não percebendo, portanto, a indignação que se apossa de muitos que já perceberam a relevância do momento que vivemos. Eles não sentem a “alma das ruas”,  em suas novas paradas respiram outros ares, remetendo-nos ao Sermão das Nuvens do padre Antônio Vieira, onde assinala : (15)

“Com terem  tão pouco do céu os ministros que isto fazem, temo-los retratados nas nuvens. Aparece uma nuvem no meio daquela baía, lança uma manga  ao mar, vai sorvendo por oculto segredo da natureza grande quantidade de água, e, depois que está bem cheia, depois que está carregada, dá-lhe o vento e vai chover daqui a trinta , daqui a cinqüenta léguas. Pois, nuvem ingrata, nuvem injusta, se na baía tomaste essa água, se na baía te encheste, por que não choves também na Baía ? Se a tiraste de nós, se a tiraste de nós, por que não a despendes conosco ? Se a roubastes aos nossos mares, por que não a restituís a nossos campo ? Tais como isto são muitas vezes os ministros que vêm ao Brasil e é fortuna geral das partes ultramarinas. Partem de Portugal estas nuvens,  passam as calmas da Linha, onde diz que talvez reservem as consciências, e em chegando verbi gratia a esta baía, não fazem mais do que chupar, adquirir, ajuntar, encher-se – por meios ocultos mas sabidos – e ao cabo de três ou quatro anos, em vez de fertilizarem a nossa terra com a água que era nossa, abrem-se as asas ao vento, e vão chover a Lisboa, esperdiçar a Madrid. Por isso nada lhes luz ao Brasil por mais que se dê, nada lhe monta e nada lhe aproveita por mais que faça, por mais que desfaça. Tudo que der a Bahia, para a Bahia há de ser : tudo que se tirar do Brasil, com o Brasil há de se gastar. “
                       

1        Conclusão.
                         Contar pra você
                              O torturador que tem soco inglês,
                               Mudar não mudou...

                               Lá em Xerém,
                                   Vilmar, o pára- militar, bate bem
                                               numa pelada fuderosa              
                                               onde não tem pra ninguém,            
                                               Ele só chama adversário            
                                               de meu anjo e neném                
                                               mas quando baixa o santo ruim                
                                               é pé na cara                                 .      
                                               e, olha bem,
                                               lambe o bigode assim PC,
                                               dá de madeira em você    
                                               por tudo que cê disse
                                               e que não disse.
                                               No fim, pede uma pizza de alicce,
                                               Diz que tá lendo Frederico Nietzsche.
                                               Conta que é torturador,
                                               não é nada pessoal,
                                               se convocado outra vez
                                               volta e me mete o pau, uai !
                                               Aí, eu jogo pinga na língua
                                               ---------------------------------
                              
                                                     Par ou Ímpar
                                                               Guinga/Aldir Blanc
                                              
                                                              
         Foi sobre o Bar, poderia ser a respeito do Bonde, suprimido em nome dos ônibus, já que se locomovia muito devagar, se comparado ao atropelador progresso. Pensei nos trens alijados, por quê?
                                  
            Existiu uma época na qual a ferrovia desempenhava papel de apreciável relevo em nosso país, ligando as regiões sudeste, nordeste e centro-oeste, apesar das deficiências questionáveis. Do Rio de Janeiro, podia-se ir a Salvador, passando pelo estado de Minas Gerais. A necessidade de justificar e facilitar a implantação das montadoras de automóveis contribuiu para a sensível redução da malha ferroviária

            Poderia ser sobre o Ensino Público Fundamental e Médio, ainda bom, entretanto denegrido pela mídia e abandonado pelo Estado, restando ainda, a Universidade Pública, gratuita e de (alguma) qualidade, que recebe os ataques daqueles que colocam seus interesses acima dos da população.

            E a Saúde? E tantas outras coisas?

            Poderia ter sido sobre Josué de Castro, esquecido e substituído por autores, muitos estrangeiros,  ou pelos doutores de última hora.

            Resta ainda o Bar...  falta remontar o que se perdeu, impedir novas perdas e  fortalecer o que de correto estiver para vir, como a Reforma Agrária conseqüente. A confraria que criou o garoto manterá sua tradição, o vento não empurrará a nuvem para longe, os compromissos continuarão a existir... É nossa esperança...



Notas e referências bibliográficas.

1        RIO, João do. A alma encantadora das ruas : crônicas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1987. P. 3.
2        Idem. P. 4.
3        Ibidem. P. 5.
4        Ibidem. P. 6,7.
5        TAVARES, Luiz Edmundo, in. “Subúrbio: A ( “ In “ ) Previsão.” – Revista ( SYN ) THESIS, Cadernos do Centro de Ciências Sociais, volume I, nº 2 . Rio de Janeiro : UERJ. P. 36.
6        VASCOMCELLOS, Eliane, ( organizadora ) in. Lima Barreto – Prosa Seleta. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 2001. P. 1261.
7        Entrevista realizada com o compositor Guilherme de Brito. 14 de maio de 2003.
8        “ Se a vida é pouca
Bate palma bate boca
Bate papo no boteco
Vem que a calma faz morada” Sidney Miller, Companhia Brasileira de Discos, 1968.
1        “ O automóvel corre, a lembrança morre
      o suor escorre e molha a calçada
      a verdade na rua, a verdade no povo
      a mulher toda nua, mas nada de novo
      a revolta latente que ninguém vê
      e nem sabe se sente, pois é pra que ?” Sidney Miller. Phonogram,  1971.
1        “ Anoiteceu
Outra vez vou sair
Andar por andar
Sem nada esperar
Sem ter pr’onde ir
Vou caminhar por aí a cantar
Tentando acalmar as tristezas por onde eu passar

A minha vida boêmia é de bar em bar
............................................................
E eu vou levando minh’alma aflita
A noite a cidade é tão bonita
Do Lamas ao capela
E da Mem de Sá
Passo no Bar Luís
E no Amarelinho é  que eu vou terminar.” João Nogueira e Paulo César Pinheiro. EMI-Odeon, 1978.
1        Olá, como vai ?
Eu vou indo, e você, tudo bem ?
Tudo bem, eu vou indo correndo
Pegar meu lugar no futuro. E você ?
Tudo bem, eu vou indo em busca de um sono

Tranqüilo, quem sabe ?
Quanto tempo...
Pois é, quanto tempo...
.............................................
Tanta coisa que eu tinha a dizer
Mas eu sumi na poeira das ruas
Eu também tenho algo a dizer
Mas me foge a lembrança
Por favor,  telefone, preciso beber
Alguma coisa rapidamente” Paulinho da Viola. Odeon, 1969.
1        TAVARES, Luiz Edmundo, in. Op. Cit. P. 35.
2        VASCONCELLOSasconcelos, Eliane, in. Op cit. P. 777.
3        Ibidem,P. 1230.
4        TAVARES, Luiz Edmundo, in História – Indagações. América Latina e Caribe – Desafios do Séculos XXI. Rio de Janeiro : UERJ. 1993. P. 199.

Luiz Edmundo Tavares. Departamento de História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.   U.E.R.J;
Revista Advir, publicação da Associação de Docentes da Uerj. Nº 17. Setembro de 2003.