quinta-feira, 18 de março de 2010

CLARICE, SEMPRE CLARICE LISPECTOR

Escrever é abalar o sentido do mundo.
Roland Barthes

Passados 33 anos (1977-2010) da morte da escritora Clarice Lispector, sua poética continua instigando indagações e vários efeitos de leitura. Caleidoscópido de imagens, seus textos são conseqüências do imaginário que sobre eles imprimi suas formas. Nesse jogo, sem entradas  ou saídas, mas em redemoinhos constantes pelos efeitos das cores, suas ficções passam a ser uma tessitura imagética e fugidia.
Não se dirigem a determinar a situação de certos seres, por conta do viés camaleônico que assumem, mas vivem a procura da real condição humana. A característica real de seus textos é viver mesmo no rastro do eterno sentido em busca de significação já que “a função da escritura é colocar a máscara e, ao mesmo tempo, apontá-la”. (BARTHES, 1972, p.28)
 A partir de fatos e personagens, ou pequenos “flashes” epifânicos, em qualquer momento não previsto ou hora inesperada, tece como um registro verbal a realidade semiótica, que pode aparentar-se com alguns mecanismos da sensível escritura barthesiana - sempre aos “Fragments d’um discours amoureux” ou ao “Plaisir du Texte”. Um lugar enfeitiçado e um “presente perpétuo” dos textos “escrevíveis”.
Como texto escrevível, segundo Lucia Helena (1997, p.86) os romances clariceano se caracterizam “por rupturas e colisões” - “já que não se baseiam no estado canônico da língua, nem da narração, tal como fixados pela escola ou pela tradição”.
Sua poética, tecida e incrustada na cidade e no tempo presente, revela a angustia do mundo contemporâneo e a solidão humana. Isto contribui para transformar sua escritura em pequenos fragmentos da vida urbana.
Querendo ou não, suas narrativas tratam-se do reencontro do texto com o sujeito: este, antes eliminado pela semiologia, ressurge agora em fragmentos, em marcas do imaginário, como o eu que encena e se representa. O corpo sob a câmera, representa agora o conflito dramático em momentos da existência, vive preso em pequenas cenas fotográficas - recordações, percepções, aparências fugidias - fotos envelhecidas ou signos da dor vivida participantes da estratégia escritural.
Seus personagens, não permitem, ao olhar semiológico, os contornos de um retrato acabado. Apenas deixam sentir as pulsações do desejo de encontrá-lo. E quando esse encontro se dá, os olhos, embebidos de feixes de luzes que surgem de lados diversos, imaginam fantasmas, esculpem um rosto etéreo. Imagens deslocadas, embora vingadas na escolha singela (das Anas e Macabéias), fortalecidas pela sondagem poética e visceral.
A autora delega sua voz às personagens que passeiam por jardins ou cenas do Rio de Janeiro, assumindo uma posição de distanciamento em relação ao objeto criado, ainda que presente neles com sensíveis retinas. O sujeito, através desses corpos à deriva pelas cidades, ao mesmo tempo presente e ausente, se dilui nos sujeitos que produz. Com eles, textos e discursos surgem e desaparecem na cena da intertextualidade ou da metalinguagem.
Seu estilo assume na escritura a tonalidade psicológica e faz dele a manifestação do talento ou do gênio pessoal. Esta concepção goza de grande aceitação através da definição de Barthes, para quem o estilo é a expressão do “eu” profundo do autor, oposto à escritura ou à relação com a sociedade, linguagem literária transformada pelo seu destino social. “ O estilo é, na sua essência (...) a transmutação de um humor... mergulha nas recordações veladas da pessoa, compõe a sua espacidade a partir de uma certa experiência da matéria. O estilo não é senão metáfora, isto é, equação entre a intenção literária e a estrutura canal do autor. Por isso o estilo é sempre um segredo”. ( BARTHES, 1972, p.12-13)
Seus textos, ao olhar semiológico, buscam a “linguagem zero”, é sempre desvio, a palavra é sentida como tal e não como simples substituto do objeto nomeado. O seu objeto situa-se num mais além da obra. A esse olhar movente e derradeiro, acrescenta-se um não escrito, a leitura, por isso “ler a obra é desejá-la em si mesmo”, segundo Barthes.
Em vista disso, a leitura se define exatamente pelo desejo de escrever do escritor e num desejo comum e sobretudo numa mesma espécie de produção em palimpsesto e à deriva. “ Um texto que tenta verdadeiramente inscrever nele o corpo do escritor, juntar se ao corpo do leitor, e estabelecer uma espécie de relação amorosa entre esses dois corpos, que não correspondem a pessoas civis e morais, mas a figuras, a sujeitos desfigurados” (BARTHES, 1975, p.38). Um leitor poroso, uma obra porosa. Mas o leitor desconfiado e conhecedor de seu projeto escritural, pontua a escritura com instantes epifânicos, o que, por sua vez, propicia que ele participe, criando seus códigos próprios e sensíveis, aproximando-se do “sentido secreto” da criação da escritura.
O texto-leitura-escritura, nessa prática de eterna fruição (no sentido de Barthes) pratica “ o recuo infinito do significado, o Texto é dilatório; o seu campo é o do significante” (BARTHES, 1987, p.57), é sempre plural, “nunca totalmente clara; ela é, por assim dizer, sentido suspenso” (BARTHES, 1964, p.256). Escrever, no mundo ficcional clariceano, “é um verbo intransitivo, pelo menos no nosso uso singular, porque escrever é uma perversão.” (BARTHES, 1975, p32).
Em Clarice, as palavras, enquanto sistema de signos, não conseguem revelar totalmente o objeto que representam. Sempre é percebido o inominável, pois um signo, em sua escritura, não se refere a um objeto em si, mas a outros signos. A poética clariceana “procura romper com os limites do signo, necessitando, portanto, de um lugar especial que, como ela, esteja disposto a se construir ao longo da narrativa e ler de forma ilimitada. O leitor precisa ser sensível para participar da conversa com as personagens-narradoras e até com a própria autora, que é textualizada”. (VIEIRA, 1988, p.94).
Ler Clarice é o tempo inteiro procurar, indagar sobre a produtividade do texto, uma “certa forma de fraturar o mundo” (BARTHES, 1966, p.76). É ter a liberdade e consciência de buscar e produzir sentidos múltiplos e renováveis, que mudam a cada leitura. Ler não seria, então aplicar modelos virtuais do texto clariceano, mas uma prática ativada pela imaginação do leitor.
Seu texto mais íntimo, semelhante a “poiésis” barthesiana, é a desinfreada busca prazerosa pela escritura. Um exercício escritural que mora mesmo no ato de dizer das coisas, arraigado na enunciação. Uma poesia em pequeninos “flashes” revelativos, momentos mágicos e luminosos de sua textualidade. “ A escritura questiona o mundo, nunca oferece respostas; libera a significação, mas não fixa sentidos”. (PERRONE-MOISÉS, 1980, p.54). Ela é a “bruma na memória, e esta, memória imperfeita que é também amnésia imperfeita” (ROBBE-GRILLET, 1995, p21)
Esse labor escritural e clariceano, aos olhos de Barthes, é a escritura. Esse modo de dizer provém do mais íntimo e único de cada escritor: de seu corpo, de seu inconsciente, de sua história pessoal; é “o termo de uma metamorfose cega e obstinada, partida de uma infralinguagem que se elabora no limite da carne e do mundo”. (BARTHES, 1972, p.12)
 Assim, na sua escritura (poiésis), sua trama escritural quando nela ouvimos a voz única de um corpo é impossível não recebê-la como gozo – um gozo textual e barthesiano, sempre inanalizável e l’obtus , irrecuperável por qualquer metalinguagem ou leitura. O texto de gozo passa a ser o sentido como perda do sujeito pensante e ganho de uma nova percepção das coisas.
 Por tudo isso e muitos outros aspectos de seus textos, inclusive o silêncio agonizante dos personagens, não é possível darem-se exemplos de escritura dessa autora; tudo passa, fundamentalmente, pela questão de leitura ( da recepção do leitor). Entretanto, folheando A Hora da Estrela (1999) o leitor mesmo verá toda essa sensualidade, humor, crítica e fantasia - não pelo que diz, mas pelo jeito sublime de dizer. Pura estratégica semiótica, puro gesto simbólico da linguagem.
A prática escritural de de Clarice Lispector, segundo Nolasco (2001, p53) “é o simulacro mesmo do modo como a autora busca uma linguagem que jamis se diz, uma linguagem que lhe devolve o indizível: aquele silêncio que significa e que, por isso mesmo, jamais seria um fracasso”.
 Em Clarice, ainda que se perceba uma leve tendência para textos que busquem o olhar apolíneo ( o seu lado clássico) a sua tendência dionisíaca é visível ( seu lado sensual, anárquico). Semelhante ao Plaisir du Texte barthesiano, predomina em sua poética o gozo textual do corpo, o gozo sensual e pulsante dos signos, o mundo semiológico e transgressor que não se deixa capturar. O sentimento de “inexprimir o exprimível, retirar da língua do mundo, que é pobre e poderosa língua das paixões, uma outra fala, uma fala exata”. (BARTHES, 1964, p.15).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
 BARTHES, Roland. Le Plaisir du Texte. Paris: Seuil.1973
______. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris: Seuil, 1975.
______. Fragments d’un discours amoureaux. Paris: Seiul, 1977.
______. S/Z. Paris: Seiul, 1970
 ______. L’obvie et l’obtus. Essais Critiques III. Paris: Seiul, 1982.
 ______. Critique et Vérité. Paris: Seiul, 1966.
 ______. Essais Critiques. Paris: Seiul, 1964.
 ______. Sobre Racine. Trad. Antonio C. Viana. Porto Alegre. L&PM, 1987.
 ______. O Rumor da Língua. Trad. António Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1987.
______. Le degré zéro de l’éscriture suivi de Nouveaux essais critiques. Paris: Seiul, 1972.
 ______, Para/ ou onde vai a Literatura. In: Escrever... Para quê? Para quem? Trad. Raquel Silva. Lisboa. Edições 70, 1975.
 HELENA, Lucia. Nem Musa, nem Medusa. Itinerários da escrita em Clarice Lispector. Niterói: EDUFF, 1997.
 LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
 NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. São Paulo: Annablume, 2001.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Barthes: o saber com sabor. Brasiliense. São Paulo, 1983.
______. Texto, Crítica, Escritura. São Paulo. Ática, 1993.
 ROBBE-GRILLET, Alain. Por que amo Barthes. Trad. Silviano Santiago, Rio de Janeiro. Ed. UFRJ, 1995.
 SANTOS, Roberto C. dos. Clarice Lispector. São Paulo, Atual, 1986.
 VIEIRA, Telma Maria. Clarice Lispector: uma leitura instigante. São Paulo: Annablume, 1998.
 WALDMAN, Berta. Clarice Lispector: a paixão segundo C.L. São Paulo: Escuta, 1992.

Rodrigo da Costa Araujo (UFF/FAFIMA)
Professor da FAFIMA - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé, Mestre em Ciência da Arte [UFF-2008] e Doutorando em Literatura Comparada, também, pela UFF.
E-mail: rodricoara@uol.com.br

Um comentário:

rodrigo disse...

Ramon:
Parabéns pelo site e pela proposta de divulgar textos e reflexões interessantes.
abração
Prof Rodrigo |Araujo