sexta-feira, 5 de março de 2010

E QUANDO, AO NASCER, NÃO PRECISAR DE NOME? OU O AMOR GRANDE DEMAIS OU DEUSA

Eu nasci na ponta-da-praia
Por isso trago dentro de mim
Todos os mares do Mundo

Meu correio são as ondas
Que me trazem e levam
Recados e segredos
(...)

Nas conchas e búzios
De todos os mares do Mundo
Ficaram encerradas
Minhas canções de amor

Que eu nasci na ponta-da-praia
Por isso trago dentro de mim
Todos os mares do Mundo
(Poema Salgado, Ovídio Martins)

Nothing really matters, love is all we need. (Madonna)
 
Luiz G. Gasparelli Junior (1), em 15 de novembro de 2007.


Para dois casais especiais: Danielle e Mario, e Valéria e Edson

Texto inspirado nas palavras doces de uma Afrodite muito próxima,
Adriana, cuja magia exala amor.

Eles estavam sozinhos, andando, à noite, pela praia, deserta. As ondas eram as mais calmas dos últimos anos. Ninguém reconheceria aquele mar bravio, naqueles tempos. A areia estava grossa, agressiva. Não era daquele tipo que deixaria marcas quando saísse da praia. Era a que afunda quando se pisa. O horizonte marítimo estava claro. A noite era de lua nova em Libra, regada de mistérios que somente através da magia do amor as coisas poderiam ser descobertas. Havia três barcos no mar, todos detonados pelo tempo, parecidos com velhas embarcações antigas, tipo corvetas oitocentistas. Naqueles barcos, homens velhos, cansados, espiariam o casal, que ainda não se conhecia, caminhar nas areias daquela praia?
Um estava parando de caminhar, esperando o refluxo marítimo, querendo acreditar que algo poderia acontecer em sua vida, querendo enxergar, além daquelas águas e daquela noite clara, mesmo de lua nova, o que o destino estaria lhe reservando, além daquele gigantesco vazio. Era um ser solitário à beira de um mar calmo, apenas. Era uma alma muitíssimo velha, aguardando outra alma tão velha como a dele. Eram os olhos perdidos naquela imensidão escurecida, procurando um sinal, mas sem nenhuma resposta.
Três corujas brancas, no meio daquela noite, estavam pousando sobre um pé de coco. Um velho, muito velho, talvez da idade da eternidade, jogava sobre a areia grossa e escurecida algumas sementes totalmente férteis, regadas com seu próprio sangue. Ele estava à espreita, observando o casal que não se enxergava. As sementes, aos poucos, eram molhadas pela água salgadíssima daquele mar calmo. Ao serem abraçadas pelas ondas finas, abriam-se como flores selvagens no meio de um deserto. Não havia perfume, mas o eclipse foi suficiente para fazer as três corujas voarem para bem longe, deixando o coqueiro inerte, sem mover uma folhagem sequer, esperando a próxima ação daquele ritual sob as águas.
Sem saber o que pensar, mergulhando nos mares do devaneio, aguardando o próximo passo, iam as sementes. Era um mar de gerúndios a sua vida. Havia alguns meses que sua vida retornara ao ponto de início, por causa de mais um desapontamento, mais um coração partido. Quando aquele buraco imenso seria coberto? Quando a vontade de amar seria, definitivamente, substituída pelo amor de verdade? Eram tantas perguntas, mas nenhuma resposta. Em suas mãos, as marcas do passado recente, as feridas ainda estavam semi-abertas naquele coraçãozinho sensível, facilmente penetrável, para alguém tão próximo. Mas eles não se viam.
As sementes estavam se transformando em uma entidade imensa, numa deusa. Um cheiro rosa tomava conta de todo o oceano. Uma bruma marítima deixava os peixes que ali por perto estavam zonzos, letárgicos, desejando asas em vez de nadadeiras. As tartarugas marinhas estavam expostas, sexuais, extremamente excitadas, prontas para uma cópula que não era sagrada pela reprodução, mas pelo prazer. Seriam as tartarugas seres que buscam o prazer? Elas, logo elas, tão sonolentas? Naquele instante, a resposta era sim. Um sim alto, sonoro, mesmo submerso.
Os dois, na areia densa, espiavam o mar. Ambos não sabiam o que estava ocorrendo. O mar, do lado de fora, era o mesmo, escurecido pela noite de lua nova em Libra. Porém lá dentro, em sua majestade liquefeita, na umidade desmesurada, a cor da água se tornou rosa por alguns instantes. A divindade, prestes a nascer, estava, antes, buscando compreender aqueles dois corações completamente abertos, que esperavam uma ferida de amor. A pré-deusa era uma flor em botão, ainda, somente. Mas podia compreender, em sua sabedoria divina, que um serviço seria feito a qualquer instante.
Ele ainda estava imóvel, esperando a resposta daquele mar calmo, aparentemente quieto, sob um céu cujas estrelas diziam, entre si, mistérios insolúveis. Seus cabelos estavam curtos, pintados desajeitadamente de loiro, como um personagem dos anos setenta. Estava apenas usando uma bermuda azul, marca esquecida. Seus pés faziam cócegas naquela areia, ele tinha um sorriso oculto sob os lábios tensos. Suas mãos, finas e desajeitadas, com dedos finos, que sua avó dissera ser de pianista ou costureiro, acariciavam uma pedra maior, entre as que estavam na areia. Os olhos, num azul escurecido pela noite, procuravam. O que procuravam aqueles olhos, Oh! Deuses! O que procuravam aqueles olhos?
Uma imensa baleia lenta e gorda, prenhe de vida, e também de um filhote que nasceria daqui a duas luas, estava se aproximando daquelas águas mágicas. Ela pressentiu uma energia estranha, nova naquele mar. Mesmo com seu pequenino cérebro arroxeado e lento de baleia, ela conseguiu pressentir algo diferente. Ao seu lado, um agitado cardume de sardinhas esperava algum alimento. Peixes tapados, não sentiam o que estava acontecendo naquelas águas. Apenas pensavam coletivamente, nada de informações individualizadas, nada de subjetividade entre aqueles peixes. Mas o inesperado estava por vir.
Sentando na areia, depois de muito andar, a única solução encontrada foi desenhar na areia a figura perdida de uma flor. Era uma flor, apenas. Sem caule, ou folha. Desenhando aquela flor, secretamente, inconscientemente, um pedido foi feito: um amor. Seus pés estavam quase recebendo as bênçãos da água mágica, esticados na areia. Suas costas, nuas, roçavam na areia, deixando cada grão mais quente e excitado, numa previsão mágica do que estava por acontecer naquele local. Em sua mente, o vazio de quem espera qualquer coisa acontecer. Um cheiro no ar indicava que o vazio fora provocado por alguma substância exótica.
A deusa já estava pronta para nascer. No mar, todos estavam preparados. No céu, muitíssimas aves, mesmo à noite, sobrevoavam as águas calmas superficialmente. Três damas brancas, saídas das profundezas da terra, carregavam em suas mãos flores de laranjeira, algumas sementes rosáceas e um punhado de terra bem vermelha. O céu esperava que aquele momento se iniciasse: algumas estrelas, agitadas, davam a pista sacra que o nascimento estava por vir.
Ele queria muito beber algumas gotas daquele mar. Não sabia o motivo, mas a vontade de fazer parte daquela gigantesca placa líquida era tão intensa, que seu corpo se curvava, querendo fazer com que seus lábios alcançassem o mar. Num ato incontido, impudico, depravado, ajoelhou-se, provou da água e, num súbito, engasgou-se. O sal era muito intenso; um gosto de maresia, de profundeza. Não era apenas a água da praia a ser sorvida naquele instante, mas a água da vida. Sem saber, ele provava da água do próprio Graal, que naquele instante, saía dos mares.
A noite, tímida, abria espaço para a luz rosa que saída da água. Sombra alguma tomava aquele espaço. Somente uma luz delicada, penetrante, irresistível, estava ali. As águas, por alguns segundos, pararam de se mover. Um vento vindo do oeste apontava o caminho sagrado do amor: estava ela, alta, lânguida, nua, completamente à vontade em seu estado de deusa, saindo das águas. Uma pequena chuva fina iniciou no céu desanuviado. Não era, evidentemente, água. Chovia pequeninas flores novíssimas, recém criadas para aquele momento. Vermelhas, brancas, rosas. Com várias pétalas que se misturavam ente si, presas por uma pequena haste, sementes amareladas e um perfume que mais se parecia com o próprio coração da Terra. Junto com a deusa, nasciam suas flores prediletas.
Sem acreditar, olhando o céu cor de rosa e a chuva de rosas, a única manifestação possível daquela pessoa completamente apavorada era a imobilidade. O corpo, tocando a areia, sentia um calor abrasador; o coração, disparado, consumia-se naquela ânsia por uma vontade de estar. Sabia que outra mudança ocorreria. Novo ambiente, talvez pessoas já conhecidas, talvez situações já vividas: mas algo extremamente novo chegaria, e, se tivesse sorte, seria para sempre.
Ela saía das águas com passos lentos, auxiliada por gigantescas conchas amareladas. O mar, imóvel, o céu, rosa e chuvoso, com a brisa oeste e as três damas brancas indicavam aquele nascimento. Batizada e com suas ferramentas, Ela estaria, a partir daquele instante, apta para sua vocação: amar, fazer amar, guiar os humanos através do amor. Porém uma pequena semente caiu-lhe de seus dedos, na água. Ela perdera, para sempre, naquele imenso e eterno mar, a semente da paz. Ela uma deusa de amor, e tornou-se, assim, a perda da paz, também.
Os dois, naquele exato instante, olharam-se. Porque assim queria o céu, o mar, a deusa, todos desejavam que eles estivessem juntos, compartilhando de uma energia única, a do amor. Eles precisavam se unir, não para se completarem, pois já eram seres em estado acabado, duas almas velhas e sábias: mas a junção desses dois seres seria a representação de que o amor existe, e de que as pessoas podem, sim, aprender uma com as outras. Eles se olharam, não acreditaram. O olhar era falseado, como que por uma tela de computador. Talvez eles demorassem a se enxergar de verdade, alguns meses, penso eu. Mas o olhar não erra. Em segundos, o laço foi feito.
A deusa sentiu-se completa ao perceber que acabara de unir tão belo casal, cujos corpos se completavam com harmonia, as idéias eram opostas e serenas, as experiências diferentes e complementares. Era a criação de sua primeira reunião amorosa, abençoada com o silêncio e o cheiro e ervas especiais, impronunciáveis. Ela achava-se a caminho de seu trono sagrado, perto de terras inóspitas, com cheiro de leite de cabra e mel. Em seu trono ofuscante, a deusa chegou e logo procurou um consorte.
E o casal, ao se tocar, na areia, chamou entidades há muito adormecidas. A união, abençoada pela brisa, céu, mar, toda a natureza, era a própria personificação da deusa do amor. Era o instante de liberdade, a construção do amor, através da construção de uma subjetividade, como uma descoberta de si.
A Deusa, já bem longe daquelas aragens, com seus vários amores, e depois de iniciar sua eterna tarefa de amar e fazer com que os outros amassem, resolveu parir um filho. Nascia, então, o moleque selvagem e destemido, responsável pelos arrebatamentos passionais. E quem ele foi, primeiramente, visitar?
Os dois descansavam, olhavam o céu já voltando a ser negro, porém com pequenos brilhos azulados de uma manhã prenhe. Silenciosos, só pensavam no amor que existe no coração humano. Quando, desapercebidamente, foram golpeados por uma força estranha. Era ele: o filho moleque que chegou.
Esse arrebatamento da paixão criou alguns empecilhos, típicos da cegueira de quem está apaixonado: ciúme, posse, desejo, vontades muito secretas. Ambos naquele estado, ambos mergulhados numa teia muito diminuta, mas infringível. E a teia estimulava sentimentos contraditórios.
O medo de ser enganado tomava conta dele. Somente a idéia da mentira, da falsidade, da quebra de conduta o deixava em pânico. Ele não tinha como exteriorizar esse pavor, mas sabia que aquilo poderia detonar bombas mortíferas, horríveis, destruidoras, capazes de exterminar seu amor. O que fazer, deusa? A culpa foi sua, de criar este vínculo. Ele, por isso, desejava uma resposta. Era a tal ausência da paz, daquela pequena semente, perdida no mar do amor.
Enquanto isso, perdendo-se em ansiedade e mesmo jurando não se planejar, traçava motivos, objetivos, metas para que tudo desse certo. Meter-se-ia em silêncios absortos, fugiria de algumas respostas para si, negaria a si o direito de saber sobre algumas questões interiores, acreditando na verdade lisa. E isso criava uma espécie de êmbolo, que ficaria totalmente guardado num escrínio verde, junto a ervas, papéis finíssimos e alguma imagem de nossa senhora.
O dia estava amanhecido. Os dois se viram de verdade, sem a sombra amável da noite. Eram dois copos seminus, expostos a um sol ainda vermelho, mas suficientemente forte para enrubescer aquelas duas faces. Sentiram medo. Pensavam se realmente seria aquele o caminho. Deram as mãos, e choraram, no silêncio. Naquele instante, poderiam se perder para sempre.
Mas eles estavam juntos. Era isso o que importava. E eles sempre estarão juntos, sob a bênção sagrada do matrimônio divino, amarrados na aliança sagrada da deusa das rosas, olhando vários crepúsculos, vários nascentes, semeando o amor que nasceu no mar da eternidade. Não haveria tempo, clima, nada que os separasse. Era somente uma luz rosa, arredondada, que os protegia. E Ela ria, alto, em seu trono sagrado, ouvindo:

Em teu trono ofuscante, Afrodite
Sagaz filha eterna de Zeus
Eu imploro: não me esmagues de aflição
vem a mim agora, como certa vez
ouviste meu longínquo lamento, e cedeste,
e te ausentaste furtivamente da casa de teu pai
para atar pássaros em tua áurea carruagem, e vieste.
Vistosos pardais trouxeram-te ligeira
Para a sombria terra,
suas asas vergastando o médio céu.
Vem pois agora a mim e liberta-me
da espantosa agonia. Labora
por meu tresloucado coração. E sê de mim aliada.


  1. O texto foi escrito graças a alguém que faz o narrador feliz. O conto que segue é a tradução de um amor inesgotável, do próprio nascimento do amor como libertação. Há três meses o mar testemunhou esse nascimento.

Luiz Gasparelli Júnior 
Mestre em Ciência da Arte (UFF), Doutorando em Literatura Comparada (UFF), licenciatura em Letras na FAFIMA
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé