quarta-feira, 24 de novembro de 2010

DISCIPLINARIZAÇÃO, CORPO E RESISTÊNCIA: apontamentos sobre o conteúdo dos discursos do jornal anarquista A Plebe.




“Para mim o anarquismo não era uma teoria aplicável em um futuro distante, mas um trabalho cotidiano para libertar-se de suas inibições, as nossas e as alheias, e abolir as barreiras que separavam artificialmente as pessoas.”
Emma Goldman

Na segunda metade do século XIX o Brasil vivia um período de mudanças sociais e econômicas, estimulando a migração de europeus, que chegavam as terras do além mar em busca de novas oportunidades para uma vida melhor. Estes traziam consigo novos elementos culturais, fruto de experiências diferenciadas, que passariam a influir no cotidiano brasileiro. Alguns, além de suas poucas bagagens, trouxeram ainda, idéias que marcariam o século XX e que construiriam um importante momento da história brasileira: tratavam-se dos socialismos em suas mais diferentes perspectivas, e entre eles, o anarquismo[1].
Com a urbanização brasileira centrada no eixo Rio-São Paulo no século XIX, e sua expansão industrial entre os anos de 1900 e 1920, muitos produtos antes importados, passam a ser produzidos no mercado interno. Com este grande crescimento industrial cresce, simultaneamente, a classe operária. As condições que envolviam o trabalho industrial eram precárias. As jornadas de trabalho eram estafantes, durando em média dezesseis horas por dia, seis dias por semana. Os salários eram baixos, e na esfera política, o único direito dos operários era votar, por ocasião das eleições.[2]
É neste contexto que florescem os ideários socialistas. É válido ressaltar que se tratava de um momento novo para o Brasil, que até então só havia convivido com trabalhadores cativos e autônomos. Esta nova classe operária, composta em grande parte por imigrantes europeus (representavam 51% dos trabalhadores industriais em São Paulo e 35% o Rio de Janeiro[3]) em muito influenciaram na politização desta classe trabalhadora.
Muitas organizações operárias socialistas passaram a surgir a partir de greves, que eclodiam em grande número nos primeiros anos do século XX[4]. E foi neste contexto, que vários periódicos foram fundados com intuito de divulgar notícias sobre as movimentações grevistas, dando início à chamada imprensa operária, que ganhou força na primeira metade deste século, se tornando um importante instrumento de propagação das idéias revolucionárias.[5]
No que diz respeito ao anarquismo, as perspectivas trazidas da Europa, apontavam para uma grande rejeição as organizações formais, por parte de seus militantes, o que acabava por dificultar a propagação de seu ideário. É neste ponto que a imprensa libertária ganha destaque. Os anarquistas fundam seus periódicos com objetivo de divulgar suas ideologias políticas, assim como buscando incitar a luta proletária, na tentativa de suprir a ausência de organizações, uma vez que seus jornais assumiam “um grande número de funções normalmente exercidas por uma estrutura organizada”, oferecendo espaços para discussões teóricas, assim como avisos, anúncios e notícias e informações de  ordem prática.[6] 
Estes periódicos serviam como poderoso instrumento, percorrendo grandes distâncias, levando as idéias anárquicas para as regiões deslocadas dos grandes centros de movimentação libertária – artifício muito interessante se considerarmos que trata-se de um país de dimensões continentais. No entanto as dificuldades referentes ao idioma – tanto no que se refere aos imigrantes quanto aos próprios brasileiros das diferentes regiões -, a falta de recursos do setor operário para manterem estas publicações, as perseguições sofridas pelos redatores destes periódicos, e ainda o iletramento das classes populares, apresentavam-se como obstáculos para estas publicações. “O fato de uma publicação existir revelava quase um milagre”.[7] No entanto, estas publicações não apenas resistiram, como também se tornaram a principal fonte para a pesquisa dos movimentos operários do século XX.
Neste contexto, o jornal A Plebe, certamente pode ser citado como um dos mais conhecidos e importantes periódicos da imprensa libertária brasileira, tanto pela extensão do período de sua existência, como pela abrangência de sua circulação. Fundado em junho de 1917 em São Paulo, em plena greve geral, tinha por objetivo servir como instrumento de divulgação das notícias desse conturbado momento, mas acaba firmando-se como importante divulgador da doutrina anarquista, mantendo sua circulação até o ano de 1949, com pequenas interrupções motivadas por perseguições policiais, políticas[8] e problemas financeiros. Fundado por Edgard Leuenroth, o jornal teve vários redatores, desde o próprio Edgard, passando por Florentino de Carvalho, Manuel Campos, Pedro Augusto Mota e Rodrigo Felipe [9].
Muitos eram os temas abordados por este jornal, desde propagandas dos princípios anárquicos, suas ideologias, seus posicionamentos anticlericais e anarco-sindicais, denúncias contra abusos policiais e prisões arbitrárias, informações sobre organizações e encontros sindicais e operários, informativos de greves - tanto no que se referiam a movimentos nacionais quanto no âmbito internacional -, convites para confraternizações e piqueniques entre os militantes da causa anarquista, operários e seus familiares, conferências, até críticas ao Partido Comunista, aos bolcheviques e aos integralistas. Do mesmo modo, também a questão da emancipação feminina e a participação das mulheres na vida pública, educação sexual, controle de natalidade, amor livre, estavam presentes em A Plebe.
Havia uma preocupação perceptível com questões ligadas ao campo moral nos conteúdos dos discursos publicados em A Plebe, além de uma abundância de opiniões pessoais e de debates que aconteciam através das páginas deste periódico. Mas, mesmo que não fosse possível apresentar um programa anárquico único no que se refere às questões morais, havia sim projetos libertários, cujo objetivo estava focado em instituir uma nova moral relativa às relações afetivas, familiares e à moral sexual [10]. Tratava-se da aplicação da liberdade, que pode ser elencada como valor primordial da ideologia anarquista, acompanhada da igualdade, como é possível perceber nas palavras do anarquista Nicolas Walter[11]: “O anarquismo é um modelo ideal que exige, ao mesmo tempo, a liberdade total e a igualdade total.” [12]
Percebendo que havia nos discursos anarquistas deste periódico, um especial destaque a liberdade focada nos corpos do proletariado, tanto masculinos quanto femininos, e compreendendo que este periódico tinha objetivo claro de doutrinação e divulgação dos ideais anárquicos, surge a questão: os discursos políticos libertários buscavam influenciar as construções das experiências percebidas através dos corpos?
Ao analisar as páginas de A Plebe, é possível perceber que os discursos acerca dos corpos eram construídos pensando-os como instrumentos para uma revolução social, que passaria pelas experiências individuais, com especial destaque aqui para aquelas focadas na sexualidade.
Ao considerarmos que as fábricas eram espaços que buscavam constituir trabalhadores disciplinados, lançando mão de vários artifícios que almejavam a formação do trabalhador ideal, concebido dentro de uma perspectiva higienista, constituído nos modelos emergentes normativos de família[13], podemos perceber o viés subversivo dos discursos anarquistas relacionados à moral e as expectativas revolucionárias depositadas nas possibilidades de experiências apresentadas através destes.
Entendendo aqui que o corpo é o instrumento pelo qual a experiência[14] se efetiva, e que este não precisa ser entendido apenas como “objeto da cultura, mas também dotado de agência própria, não apenas como receptáculo de símbolos, mas como produtor de sentido”[15], é possível perceber a intencionalidade da inclusão das temáticas relacionadas ao corpo apresentadas nos discursos anarquistas presentes no jornal A Plebe.
Desta forma está proposto o desafio de pensar o conteúdo destes discursos para além de uma análise focada na perspectiva moral[16], uma vez que estes desejavam imputar uma força política aos corpos, contrapondo-se aos discursos médicos de higienização e normatização, assim como a disciplina fabril, vigentes no período, afastando-se do modelo de operariado ideal, contrapondo-se a uma “tecnologia política do corpo” [17], em prol da revolução social.
Na produção destes discursos, os anarquistas e as anarquistas, nas páginas de A Plebe, “desnudam os corpos” ao se proporem a discutir amor livre, educação sexual, casamento indissolúvel, emancipação feminina, aborto, vasectomia, anticoncepcionais e prostituição, desvinculando estes temas do campo puramente moral e ligando-os ao campo social, e especialmente, ao campo das experiências.
Estariam os discursos anárquicos de A Plebe buscando entender os corpos como produtores de cultura, não somente como produto desta, na tentativa de promover novos sentidos às experiências sociais?
Dentro de uma perspectiva foucaultiana, é possível perceber a resistência as tecnologias políticas e suas formas de vigilância sobre o corpo presentes nas páginas deste periódico anárquico, sendo um exemplo a defesa ao amor livre, que consistia, na verdade, em uma crítica ao modelo da norma burguesa de família, assim como, contrapunha-se à instituição católica do casamento, tachados de “superstição e egoísmo” de uma “vida em sociedade” [18]. Como artifício discursivo, utilizavam a idéia de que este amor livre estaria ligado ao direito ao amor como um sentimento natural, “menos a uma proposta de variação de parceiros, do que a crítica à institucionalização dos sentimentos em formas rígidas e envelhecidas” [19]. Era a maneira com que os libertários, assim como as libertárias questionavam a disciplinarização do amor e do sexo.
É bem verdade que o tema “amor livre” não era questão pacífica nas páginas de A Plebe, e muitos eram os posicionamentos apresentados, nas mais diferentes concepções e entendimentos, sinalizando não apenas para uma diversidade de concepções, a partir das quais, apenas torna-se possível afirmar que havia uma intencionalidade destes discursos – sejam eles a favor ou contra a concepção de “amor livre” – no sentido de que visavam à formação de sujeitos que poderiam dar forma a revolução social almejada pela doutrina anárquica.
Esta tentativa de constituição de saberes que poderiam resistir a disciplina que visava fabricar corpos submissos, “dóceis”, cuja normatização objetivava aumentar “as forças do corpo (em termos econômicos e de utilidade) e diminuir essas mesmas forças (em termo políticos de obediência)” [20], apresentava-se de diferentes formas nas páginas de A Plebe, sendo que em alguns textos é possível encontrar, por exemplo, contraposições aos  saberes médicos, como podemos perceber no trecho selecionado abaixo, em que há uma crítica ao entendimento da prostituição como fruto de patologia:

Esses médicos e sociólogos, que sempre viveram confortavelmente, vão descobrir em todas as prostitutas supostas taras hereditárias no sistema nervoso, ou então, pronunciada preguiça e incapacidade para a luta (...). Dessas supostas taras hereditárias (...) eles, os “homens da ciência”, procuram fazer todo o fundamento da prostituição.[21]

A resistência anarquista as “tecnologias políticas” de vigilância da sexualidade podem ser percebidas também em seu projeto de educação sexual, que ambicionava educar as futuras gerações para uma maior autonomia em relação a seus próprios corpos. Estas campanhas pela educação sexual, tão caras aos anarquistas, eram também seguidas por campanhas realizadas pela própria Igreja Católica, que desde 1931, com a sanção do Papa, proíbe formalmente os pais católicos e professores de esclarecerem os filhos ou alunos – de ambos os sexos - a respeito de assuntos sexuais, sendo que somente os padres ficariam autorizados, em “casos urgentes”, a dar explicações sobre o tema[22].
É importante destacar que a produção destes discursos, apesar de considerados  avançados para o período, tinham influências provenientes do movimento anárquico existente fora das fronteiras brasileiras, como é o caso da influência exercida por Emma Goldman[23], que muito inspirava as militantes engajadas em uma luta pelo emancipação feminina, seja por sua vida militante ou  seja por seus escritos inspiradores, assim como de algumas personalidades – mesmo que contraditórias – como a brasileiraah!! Maria Lacerda de Moura[24], que em seus muitos escritos defendia veementemente o direito ao prazer sexual.
Estes são apenas alguns vislumbres da amplitude das discussões que estavam postas nas páginas deste importante impresso anárquico, mas que sinalizavam para as mudanças (e resistências) relacionadas à sexualidade e ao corpo que já se encontravam em curso na modernidade ocidental[25], e que portanto não podem ser considerado um estudo conclusivo ou acabado, pois as análises referentes a corporalidade a partir da proposta anárquica de formação de corpos revolucionários, capazes de se contraporem a tentativa de formação de “corpos dóceis”, presentes nas páginas de A Plebe, possuem muitos outros elementos que não foram contemplados neste artigo, mas que sinalizam para novas perspectivas de análises neste tão instigante tema, para além de uma simples análise pelo viés da moralidade, na tentativa de apresentar a profundidade que pode estar presentes nos estudos realizados sob perspectivas interdisciplinares.



[1] Historicamente o anarquismo surge como movimento organizado durante a Associação Internacional dos trabalhadores (também chamada de Primeira Internacional), em 1864, quando passam a distinguir-se efetivamente dos marxistas. In: WALTER, Nicolas. Do Anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2000, p. 09-10.
[2]  BATALHA, Claudio. O Movimento Operário na Primeira República. Rio De Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 08-17.
[3] Idem, p. 12.
[4] Idem, p. 39.
[5] FERREIRA, Maria Nazareth. A Imprensa Operária no Brasil 1880-1920. Petrópolis, Vozes, 1978, p.19-46.
[6] GROSSMAN, Hadassa. A imagem da mulher na imprensa de esquerda no Brasil, 1889-1922: uma exposição sumária. Cadernos AEL. UNICAMP\IFCH, v.8\9, 1998, p. 70.
[7] Idem, ibidem.
[8] Na década de 1930 era Rodolfo Felipe quem dirigia A Plebe, em uma época em que ainda era possível sentir os abalos causados pela “revolução” de 30 e a chegada de Getúlio Vargas ao poder. Era época de intensa perseguição aos anarquistas. Evidentemente, estas perseguições não eram uma grande novidade para os militantes, entretanto foi neste período que se inaugurou um diferencial, o DEOPS-SP (Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo: órgão de repressão política utilizado no governo Vargas para coibir e controlar a existência de focos políticos contrários ao governo instaurado) que passou a funcionar  intensa e sistematicamente, tornando mais arriscada a militância efetiva. Nos anos de 1934 e 1935, tanto o diretor do jornal Rodolfo Felipe, que havia sido preso algumas vezes, quanto o próprio periódico A Plebe, experimentaram um período de “sossego”.
[9] SILVA, Rodrigo Rosa. As idéias como delito: a imprensa anarquista nos registros do DEOPS-SP (1930-1945). In: DEMINICIS, Rafael Borges e REIS FILHOS, Daniel Aarão. História do Anarquismo no Brasil  vol. I. Niterói – RJ: Mauad X, 2006, p. 113-132.
[10] RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar (1890-1930). 2ª Ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p.95.
[11] Anarquista contemporâneo, jornalista e conferencista inglês que faleceu em 07 de março de 2000, com  65 anos.
[12] WALTER, Nicolas. Do Anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2000, p. 06.

[13] RAGO, 1985, p. 17-18.
[14] CSORDAS, Thomas. Corpo, significado, cura. Porto alegre: Ed. UFRGS, 2008.
[15] MALUF, Sônia Weidner. Corpo e corporalidade: abordagens antropológicas. Esboços. PPGH\UFSC, v.9, 2001, p.88.
[16]  Uma pesquisadora que realizou importantes análises neste sentido foi Margareth Rago, indubitavelmente uma referência no que se refere ao tema.
[17] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 24ª Ed., Petrópolis: Vozes, 1987.
[18] A Plebe. São Paulo, 19 de janeiro de 1935.
[19]RAGO, Margareth. Do amor Livre. In: Revista Libertárias: Revista de Cultura Libertária, n. 03. São Paulo, set. 1998, p.11.
[20] FOUCAULT, 1987, p. 119.
[21] A Plebe, 19 de janeiro de 1935.
[22] RIBAS, Ana Claudia. A “Boa Imprensa” e a “Sagrada família”: sexualidade, casamento e moral nos discursos da imprensa católica em Florianópolis – 1929/1959.  Florianópolis, UDESC, 2009. Dissertação de Mestrado.
[23] Nasceu em 1869, na Rússia, mas em 1886 migrou para a América, onde trabalhou como operária. Tida como uma “oradora nata” realizou inúmeras conferências em prol da emancipação feminina. Foi presa várias vezes. Participou como colaboradora em diversos jornais anarquistas, até que passou a publicar sua própria revista chamada Mother Earth. Morre em fevereiro de 1940.
[24] Outras militantes anarquistas de destaque também tiveram textos seus citados em A Plebe, como por exemplo: Anita Figueiredo e Sônia Oiticica, entre outras.
[25] GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: UNESP, 1993.







Ana Claudia Ribas
Mestre em História do Tempo Presente e Doutorando em Ciências Humanas
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis - SC

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