quarta-feira, 2 de junho de 2010

RESSIGNIFICANDO O 13 DE MAIO: A HISTÓRIA DA ABOLIÇÃO, A MOBILIZAÇÃO DE PROTAGONISTAS NEGROS, E A REALIDADE DO 14 DE MAIO


Nas últimas décadas da escravidão, movimentos abolicionistas e projetos de lei foram acompanhados tanto por um processo de fuga em massa de escravos como por intensa mobilização popular, principalmente nas cidades. Essa é uma história que ainda não foi escrita”
(Flávio dos Santos Gomes) (1)

A  História tem como uma de suas funções a preservação da memória, de fatos e personagens do passado. Tem a sua origem de sua definição, do grego antigo historie, que significa testemunho, no sentido daquele que vê. É a ciência que estuda o Homem e sua ação no tempo e no espaço, concomitante à análise de processos e eventos ocorridos no passado (Wikipédia).

Atualmente, a própria definição de “História” tem sido ressignificada, pois mais do que ser apenas uma forma de “preservação e registro do passado”, ela tem uma presença importante na análise e compreensão do presente. Ela, ainda que pareça, não é neutra ou inocente, e serve aos mais diferentes usos (e abusos), tanto por parte de quem a produz e difunde como de quem a consome.

Considerando-se portanto, estas definições, podemos realizar alguns questionamentos: os testemunhos que ficam registrados, considerados como “oficiais”, são testemunhados por quem? Sob que “ótica, perspectiva”, com que “olhos” os testemunhos são registrados? Será que há apenas “uma testemunha”? Existe uma “história única”?

A ampliação do conceito de “História”, e até mesmo a sua contextualização, contemporanização (e até mesmo atualização), é algo que pode ser realizado, e de certo modo, em algumas situações e contextos, é até mesmo necessário. A realidade “presente”, é consequência de um processo histórico, onde  “o passado” (história), tem uma importância fundamental. O passado não está morto. O presente é uma consequência, reconstrução, reinvenção do passado. O passado é presente.

Conforme declara o historiador francês Marc Bloch (1886-1944), “longe de ser a disciplina que estuda o passado, é a Ciência cujo objeto de estudo é a obra dos homens no tempo. Neste sentido, vai desde a mais antiga pré-história humana até o mais vivo e atual presente”.(2)

Segundo Rojas (3), “abusam da História os que, pretendendo oferecer-nos um conhecimento supostamente “neutro” e “objetivo”, somente legitimam e validam as versões conhecidas e gastas da História oficial, repetindo mil vezes que apenas “narram os fatos tal como aconteceram”. (…) justificam que os vencedores tinham de vencer, e que os poderes hoje dominantes, em termos econômicos, políticos, sociais e culturais, imperam por uma inevitável causalidade e necessidade supostamente “históricas”. Entretanto, ao repetir dessa maneira acrítica o discurso dos vencedores, e ao prostrar-se  tão cômoda e passivamente diante dos “fatos consumados”, este tipo de História “esquece” que das múltiplas histórias paralelas que sempre dão contorno à trama complexa e real das sociedades, ela está observando  somente uma história, que é precisamente aquela que provisoriamente triunfou na batalha.”

O olhar historiográfico, mais do que descritivo, deve ser reflexivo, conforme declara Eric Hobsbawn. “Para Hobsbawm, a História não é uma simples descrição de fatos ocorridos ocasionalmente na experiência humana, mas a possibilidade de compreender os problemas que a caracterizam e quais devem ser as condições para sua solução. É fazer uma reflexão positiva dos fatos nos quais estamos inseridos, "por mais insignificantes que sejam os nossos papéis – como observadores de nossa época..." para ele, o ofício dos historiadores é lembrar o que os outros esquecem, o que consequentemente os torna de fundamental importância na construção da experiência humana” (4).




No tocante a história dos negros no Brasil, nos seus mais diversos aspectos, em todas as épocas desde a sua inserção à partir do tráfico atlântico, e suas contribuições no processo de construção da sociedade e identidades brasileiras, há muito ainda a ser escrito (e desvendado). Fatos e personagens negros, são de modo geral, excluídos (ou invisibilizados, reduzidos, esquecidos) na história oficial. Desvendar, resgatar, reescrever esta história é um desafio posto na atualidade àqueles que investigam e tentam compreender as realidades e condições em que se encontra o elemento negro na sociedade brasileira.

Momentos importantes em que o negro é personagem, direta ou indiretamente, têm sofrido uma “revisão histórica” e o 13 de maio é um destes momentos. A abolição, historicamente registrada como “presente da princesa regente em favor dos negros” já não se sustenta como “verdadeira”. Outros olhares, baseados em variados registros e de modo meticuloso, introduzem novas cores ao retrato preservado pela História oficial.

No que diz respeito a cronologia, desde 1575, a resistência dos negros à escravidão, e a sua fuga ocorrida em diversos momentos (e a sua organização em quilombos, como o de Palmares) demonstram o protagonismo negro na sua busca por liberdade. Outros fatores contribuíram também  para a decadência da escravidão e contribuíram para a abolição, entre os quais podemos destacar (5):
- 1850 - promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que acabou definitivamente com o tráfico negreiro intercontinental. Com isso, caiu a oferta de escravos, já que eles não podiam mais ser trazidos da África para o Brasil.
- 1865 - Cresciam as pressões internacionais sobre o Brasil, que era a única nação americana a manter a escravidão.
- 1871 - Promulgação da Lei Rio Branco, mais conhecida como Lei do Ventre Livre, que estabeleceu a liberdade para os filhos de escravas nascidos depois desta data. Os senhores passaram a enfrentar o problema do progressivo envelhecimento da população escrava, que não poderia mais ser renovada.
- 1872 - O Recenseamento Geral do Império, primeiro censo demográfico do Brasil, mostrou que os escravos, que um dia foram maioria, agora constituíam apenas 15% do total da população brasileira. O Brasil contou uma população de 9.930.478 pessoas, sendo 1.510.806 escravos e 8.419.672 homens livres.
- 1880 - O declínio da escravidão se acentuou nos anos 80, quando aumentou o número de alforrias (documentos que concediam a liberdade aos negros), ao lado das fugas em massa e das revoltas dos escravos, desorganizando a produção nas fazendas.
- 1885 - Assinatura da Lei Saraiva-Cotegipe ou, popularmente, a Lei dos Sexagenários, pela Princesa Isabel, tornando livres os escravos com mais de 60 anos.
- 1885-1888 - o movimento abolicionista ganhou grande impulso nas áreas cafeeiras, nas quais se concentravam quase dois terços da população escrava do Império.

Segundo pesquisa estatística realizada pelo Gabinete Dantas (1884-1885) e pesquisa realizada em 1887(6), a população escrava no Brasil era a seguinte:

  - 1873 – 1.541.348 escravos
  - 1887 –    723.419 escravos, distribuídos da seguinte forma:
                - 336.174 escravos entre 30 e 40 anos;
                - 122.097 escravos entre 40 e 50 anos;
                -   40.600 escravos entre 50 e 55 anos;
                -   28.822 escravos entre 55 e 60 anos.

Percebe-se nitidamente a diminuição da população considerada escrava, pelos mais variados motivos e, portanto, o reduzido alcance no que diz respeito ao número de beneficiados pela “Lei da princesa”. A pressão internacional, a mobilização popular e as ações de resistência dos negros (fugas em massa) acabaram por provocar a promulgação da Abolição (de direito, juridicamente, do que já era um fato).

No aspecto político, a promulgação da abolição pela regente era mais uma tentativa de manutenção de poder, e resistência ao movimento republicano, que possuía entre os seus partidários uma maioria de adeptos à causa abolicionista. Promulgando-se a abolição, tentava-se esvaziar (ou pelo menos reduzir significativamente) a mudança de regime, o que não logrou exito, pois em 1889 a República foi declarada.

Do ponto de vista dos personagens de destaque, a presença dos “Heróis Negros” no movimento abolicionista e na luta contra a escravidão também é reduzida nos registros históricos oficiais. José do Patrocínio, Luís Gama, André Rebouças e Tobias Barreto não são devidamente reconhecidos pelas suas realizações em favor da causa abolicionista, se comparados a exaltação historiográfica concedida à Princesa Izabel e a Joaquim Nabuco, por exemplo.

Diversas províncias e cidades do império, antes da promulgação da lei, já haviam eliminado a escravidão em seus territórios. Dentre elas, podemos destacar (7):
- Mossoró – 30 de setembro de 1883;
- Ceará – 25 de março de 1884;
- Manaus – 24 de maio de 1884;
- Açu (Rio Grande do Norte) – 24 de Junho de 1885;
- Carnaúba (Rio Grande do Norte) – 3 de março de 1887;
- Natal – Janeiro de 1887;
- Triunfo (Rio Grande do Norte) – 25 de março de 1887.

A cidade de Macaé, de modo particular, também tem uma história de vanguarda no que se refere à abolição. A resistência dos negros à escravidão, através de fugas e formação de quilombos (como o de Palmares), também ocorreram no território macaense. O interesse e dedicação de alguns historiadores em resgatar e reescrever estas histórias são de grande importância. Podemos destacar, de modo especial, alguns trabalhos como o de Flávio dos Santos Gomes, que relata (8)

A maior parte da historiografia brasileira dedicada ao estudo da resistência negra procurou privilegiar o enfoque sobre os quilombos e insurreições. Mais que isso, foi privilegiado o estudo de grandes quilombos e levantes, onde procurava-se destacar o número de cativos envolvidos e suas lideranças. Considerava-se, deste modo, somente essas lutas como aquelas nas quais os escravos brasileiros teriam tido mais "consciência" de sua condição'. Nelas ressaltariam-se também os heróis, logo transformados em mitos, que por si só -segundo tais análises -desbancariam as abordagens que apontavam para uma escravidão brasileira "branda", na qual os escravos teriam sido "passivos". Pequenos mocambos ou revoltas rapi-damente sufocadas eram, assim, consideradas de menor ou de quase nenhuma importância histórica.

(…)  Deste modo, elegem-se poucos lugares e momentos da luta dos escravos brasileiros para conquistar a sua emancipação. A partir de uma revisão crítica, entretanto, vários autores têm demonstrado mais recentemente como os aspectos históricos da resistência negra - não só aquela dos quilombos e das insurreições - são complexos, multifacetados e atravessam vários períodos e regiões da escravidão.

(…) As histórias de mocambos fluminenses no século XVIII, entretanto,não terminam naquela tentativa de destruição em Bacaxá. Até o final do século surgiriam notícias a respeito de comunidades de fugitivos por toda a parte. Um episódio interessante -sobre o qual infelizmente temos muito poucos clados - e o do quilombo do Curukango. Este mocambo localizava-se à nordeste de Macaé - norte da capitania - próximo das nascentes do rio do Deitado, afluente do São Pedro. Era liderado por um cativo fugido africano, de origem "moçambique", denominado Curukango (também conhecido por Carucango ou Querucango). Consta que este africano teria assassinado o seu senhor, Antônio Pinto e se internado na mata, procurando formar um mocambo. Este, posteriormente chegou a ter cerca de  duzentos negros, tendo "muitas roças de milho, feijão e outros cultivos".

Dizia-se também que estes quilombolas praticavam saques e assassinatos,sendo as escravas da região "levadas a força da casa dos senhores". Uma expedição comandada pelo chefe do destacamento militar local, Antão de Vasconcelos, perseguiu e capturou Curukango. Consta, igualmente, que o "furor" da tropa punitiva foi tamanho que os quilombolas "foram degolados e as suas cabeças espetadas em estacas à margem da estrada geral, para servirem de exemplo aos outros escravos".   
Outros mocambos surgiriam naquela capitania. Em 1759, as autoridades novamente tentavam perseguir quilombolas. Desta feita a área dos embates seria a região de Macacu, não muito distante de Bacaxá,
Saquarema e Maricá.

Antonio Alvarez Parada, também relata em um de seus trabalhos (9):

(…) Memória da escravidão: “Anúncios curiosos de velhos jornais” [p.139-143]
Eram muito comuns, na época áurea da escravidão, os anúncios de fugas de escravos e de recompensas por sua recaptura. A título de exemplo, eis o que segue, colhido em o ‘Monitor Macaense’ de 12 de outubro de 1866.”
Escravo fugido – fugiu da fazenda de D. Anna Moreira da Costa Bellas, há 2 meses, o seu escravo Manoel, crioulo, idade 40 anos pouco mais ou menos, com os sinais seguintes: pouca barba, altura regular, carrancudo, sofre de cravos de bobas nos pés; levou vestido calças e ceroula de algodão. Quem o apreender e levá-lo a sua senhora ou aos srs. Torres & Cia será gratificado. Desconfia-se que fôsse para os lados do Rio das Ostras. Protesta-se contra quem o tiver acoitado”. (Jornal “Monitor Macaense” de 12 de outubro de 1866)
Marcelo Abreu Gomes, registra em um de seus trabalhos sobre os Quilombo de Carukango  e Cruz Sena (10):

Escravos, quilombos e outros personagens
A escravidão foi uma marca presente em nossa região. Milhares de escravos trabalharam nas fazendas e casas de Macabu. Onde havia escravos, havia rebeliões, havia quilombos. Em Macabu não foi nada diferente, rebeliões, e, principalmente quilombos foram comuns, com destaque ao Quilombo do Carukango e o recém-descoberto Quilombo do Cruz Sena.

A mobilização popular também teve grande influência na eliminação da escravidão no território de Macaé. Desde 1870, através de ações promovidas pela Loja Maçônica Perseverança II, estimulavam-se  e organizavam-se  formas de promover a alforria de escravos. Conforme registra Godofredo Tinoco (11):
E a prova, nós vamos encontrar nos preciosos arquivos da Loja Maçônica Perseverança II, que desde 1870, procurava vencer o mal; os mais conspícuos cidadãos, em cujo meio estavam Alfredo Augusto Guimarães Backer, Alfredo Nascentes Barreto, Artur Antão de Vasconcelos, Dionísio Teixeira Meireles, Pedro Alcântara Guimarães, Torquato Nascentes da Silva e tantos outros, estimulavam a alforria dos escravos organizando pequenas caixas para a compra, em leilão, de escravos.
Compra-os a Maçonaria para libertá-los e fazendo, de preferência, com as crianças de sexo feminino e ainda impúberes, e nesse sentido, oficiava, pedindo a solidariedade de todas as outras Lojas do Brasil”.

Podemos concluir portanto, a partir destas diversas considerações, que a abolição mais que uma benesse do poder imperial, foi fruto de diversos elementos que acabaram por provocar a sua promulgação. Diversos fatos e atores, das mais variadas formas, contribuíram para a eliminação do trabalho escravo no Brasil.

Entretanto (e infelizmente), o 14 de maio ainda se mantém na realidade dos negros na atual  sociedade brasileira: os negros libertos da escravidão, sem contudo, terem direito à cidadania plena. Educação, moradia, trabalho e participação igualitária no poder e na riqueza do país ainda não lhe foram concedidos. No 14 de maio efetivou-se a abolição da escravidão, e iniciou-se a promulgação da desigualdade, que deve ser verdadeira e definitivamente eliminada da vida da população negra brasileira. Devemos ter o 13 de maio como o ponto de partida na luta pela cidadania para os negros, e buscar fazer do 14 de maio um dia de reivindicação pela igualdade de direitos  para a população negra do Brasil.







Referências Bibliográficas:
1- GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005. pg.9.

2 e 3- ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Revista Leituras da História; Número 18. São Paulo:Editora Escala, 2009.  pgs.5,6.

4 - Contribuição de Eric Hobsbawn na História. Disponível em: http://www.webartigos.com/articles/22804/1/Contribuicao-de-Eric-Hobsbawn-na-Historia/pagina1.html. Acesso em 23/09/2009.

5 - Abolição da Escravatura no Brasil. Disponível em: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/abolicao-da-escravatura-no-brasil/abolicao-da-escravatura-no-brasil-1.php . Acesso em 18/11/2009

6  e 7 - Encarte sobre a Abolição da Escravatura. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/19659293/Encarte-sobre-a-Abolicao-da-Escravatura. Acesso em 15/11/2009.


8 -  GOMES, Flávio dos Santos. UMA TRADIÇÃO REBELDE:notas sobre os quilombos na capitania do Rio de Janeiro (1625-1818). Disponível em: http://www.afroasia.ufba.br/edicao.php?codEd=70. Acesso em 13/11/2009.

9 – PARADA, Antonio Alvarez. Coisas e gente da velha Macaé: crônicas históricas. São Paulo, SP : Edigraf. 1958. Disponível em: http://www.google.com/search?client=ubuntu&channel=fs&q=Quilombo+do+carukango&ie=utf-8&oe=utf-8. Acesso em 13/11/2009.

10 – GOMES, Marcelo Abreu.  Dos Índios aos Sete Capitães. Disponível em: http://www.macabunews.com.br/informativo.php?cat=A%20Cidade. Acesso em 13/11/2009.

11 – TINOCO, Godofredo. Macaé. Rio de Janeiro: Instituto Fluminense do Livro, 1962. pg. 128. http://www.google.com/search?client=ubuntu&channel=fs&q=Quilombo+do+carukango&ie=utf-8&oe=utf-8 . Acesso em 13/11/2009.

Jorge Luís Rodrigues dos Santos
Graduado em Letras, Especialista em Estudos Afro-Diaspóricos, Pós-graduando em Psicopedagogia e Orientação Educacional. Professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira da Secretaria Estadual de Educação
do Rio de Janeiro. Tutor do Curso Educação para as Relações Étnico-Raciais, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Programa de Educação Sobre o Negro na Sociedade Brasileira (PENESB),
Pólo UAB Rio das Ostras.

Um comentário:

rafaleary disse...

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