quinta-feira, 16 de setembro de 2010

BARBÁRIE E MODERNIDADE NO SÉCULO XX

O vocábulo “bárbaro” é de origem grega, designando, na Antiguidade, as nações não-gregas, consideradas primitivas, incultas, atrasadas e brutais. A oposição entre civilização e barbárie é, pois, antiga. Ela encontra uma nova legitimidade na filosofia iluminista e será herdada pela esquerda. O termo “barbárie” tem, segundo o dicionário, dois significados distintos, mas ligados: “falta de civilização” e “crueldade de bárbaro”. A história do século XX nos obriga a dissociar essas duas acepções e refletir sobre o conceito – aparentemente contraditório, mas de fato perfeitamente coerente – de “barbárie civilizada”. Em que consiste o processo civilizador? Como bem demonstrou Norbert Elias, um de seus aspectos mais importantes é que a violência não é mais exercida de maneira espontânea, irracional e emocional pelos indivíduos, mas é monopolizada e centralizada pelo Estado, mais precisamente, pelas forças armadas e pela polícia. Graças ao processo civilizador, as emoções são controladas, o caminho da sociedade é pacificado e a coerção física fica concentrada nas mãos do poder político[1]. O que Elias, no entanto, não parece ter percebido é o reverso dessa brilhante medalha: o formidável potencial de violência acumulado pelo Estado. Inspirado por uma filosofia otimista do progresso, ele podia escrever, ainda em 1939: “Comparada ao furor do combate abissínio (...) ou daquelas tribos da época das grandes migrações, a agressividade das nações mais belicosas do mundo civilizado parece moderada (...); ela só se manifesta em sua força brutal e sem limites em sonho e em alguns fenômenos que nós qualificamos de ‘patológicos’”[2]. Alguns meses depois dessas linhas terem sido escritas, começava uma guerra entre nações “civilizadas” cuja “força brutal e sem limites” é simplesmente impossível de comparar com o pobre “furor” dos combatentes etíopes, tamanha a desproporção. O lado sinistro do “processo civilizador” e da monopolização estatal da violência se manifestou em toda a sua terrível potência.
            Se nós nos referimos ao segundo sentido da palavra “bárbaro” – atos cruéis, desumanos, a produção deliberada de sofrimento e a morte deliberada de não-combatentes (crianças, em particular) – nenhum século na História conheceu manifestações de barbárie tão extensas, tão massivas e tão sistemáticas quanto o século XX. Certamente a história humana é rica em atos bárbaros, cometidos tanto pelas nações “civilizadas” quanto pelas tribos “selvagens”. A história moderna, depois da conquista das Américas, parece uma sucessão de atos desse gênero: o massacre de indígenas nas Américas, o tráfico negreiro, as guerras coloniais. Trata-se de uma barbárie “civilizada”, isto é, conduzida pelos impérios coloniais economicamente mais avançados.
            Karl Marx era um dos críticos mais ferozes desses tipos de práticas maléficas e destruidoras da modernidade, que para ele estão associadas às necessidades de acumulação de capital. Em “O Capital”, especialmente no capítulo sobre a acumulação primitiva, encontra-se uma crítica radical aos horrores da expansão colonial: a escravização ou o extermínio dos indígenas, as guerras de conquista, o tráfico negreiro. Essas “barbáries e atrocidades execráveis” – que segundo Marx – “não têm paralelo em qualquer outra era da história universal, em nenhuma raça, por mais grosseira, impiedosa e sem pudor que ela tenha sido” – não foram simplesmente passadas aos lucros e perdas do progresso histórico, mas devidamente denunciadas como uma “infâmia”[3]. Considerando algumas das manifestações mais sinistras do capitalismo, como as leis dos pobres ou as workhouses – estas “bastilhas de operários” -, Marx escreveu em 1847 esta passagem surpreendente e profética, que parece anunciar a Escola de Frankfurt: “A barbárie reapareceu, mas desta vez ela é engendrada no próprio seio da civilização e é parte integrante dela. É a barbárie leprosa, a barbárie como lepra da civilização”[4]. Mas com o século XX, um limite é transgredido, passando-se a um nível superior: a diferença é qualitativa. Trata-se de uma barbárie especificamente moderna, do ponto de vista de seu etos, de sua ideologia, de seus meios, de sua estrutura. Nós voltaremos a esse ponto.
            A Primeira Guerra Mundial inaugurou esse novo estágio da barbárie civilizada. Dois autores, os primeiros, soaram o sinal de alarme em 1914-15: Rosa Luxemburgo e Franz Kafka. Apesar de suas evidentes diferenças, eles têm em comum o fato de terem tido a intuição – cada um à sua maneira – de que alguma coisa sem precedentes estava para se constituir no curso daquela guerra.
            Ao usar a palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, Rosa Luxemburgo em A Crise da Social-Democracia, de 1915 (assinada com o pseudônimo Junius), rompeu com a concepção – de origem burguesa, mas adotada pela Segunda Internacional – da história como progresso irresistível, inevitável, “garantido” pelas leis “objetivas” do desenvolvimento econômico ou da evolução social. Essa palavra de ordem é sugerida por certos textos de Marx ou de Engels, mas é Rosa Luxemburgo quem dá a ela essa formulação explícita e elaborada. Ela implica uma percepção da História como um processo aberto, como uma série de “bifurcações”, nas quais o “fator subjetivo” – consciência, organização, iniciativa – dos oprimidos torna-se decisivo. Não se trata mais de esperar que o fruto “amadureça”, segundo as “leis naturais” da economia ou da história, mas de agir antes que seja tarde demais. Porque o outro lado da alternativa é um sinistro perigo: a barbárie. Em um primeiro momento ela parece considerar a “recaída da barbárie” como “a aniquilação da civilização”, uma decadência análoga àquela da Roma antiga[5]. Mas logo ela se dá conta que não se trata de uma impossível “regressão” a um passado tribal, primitivo ou “selvagem”, mas antes, de uma barbárie eminentemente moderna, da qual a Primeira Guerra Mundial dá um exemplo surpreendente, bem pior em sua desumanidade assassina do que as práticas guerreiras dos conquistadores “bárbaros” do fim do Império Romano. Jamais no passado tecnologias tão modernas – os tanques, o gás, a aviação militar – tinham sido colocadas a serviço de uma política imperialista de massacre e de agressão em uma escala tão imensa.
            As intuições de Kafka são de uma natureza amplamente diversa. É sob a forma literária e imaginária que ele descreve a nova barbárie. Trata-se de uma novela intitulada A Colônia Penal: em uma colônia francesa, um soldado “indígena” é condenado à morte por oficiais cuja doutrina jurídica resume, em poucas palavras, a quintessência do arbitrário: “a culpabilidade não deve jamais ser colocada em dúvida”. Sua execução deve ser cumprida por uma máquina de tortura que escreve sobre seu corpo, com agulhas que o atravessam, a frase “Honra teus superiores”. A personagem central da novela não é nem o viajante que observa os acontecimentos com uma hostilidade muda, nem o prisioneiro, que não reage de modo nenhum, nem o oficial que preside a execução, nem o comandante da colônia. É a máquina mesma. Toda a narrativa gira em torno desse sinistro aparelho (Apparat), que parece, mais e mais, no curso da explicação detalhada que o oficial dá ao viajante, como um fim em si mesmo. O Aparelho não está lá para executar o homem, é, sobretudo, este que está lá pelo Aparelho, para fornecer um corpo sobre o qual ele possa escrever sua obra-prima estética, sua inscrição sangrenta ilustrada de “muitos florilégios e ornamentos”. O oficial mesmo é apenas um servidor da Máquina e, finalmente, ele mesmo se sacrifica a esse insaciável Moloch[6]. Em que “máquina de poder” bárbara, em que “aparelho da autoridade” sacrificador de vidas humanas pensava Kafka? A Colônia Penal foi escrita em outubro de 1914, três meses após a eclosão da Grande Guerra. Há poucos textos na literatura universal que apresentem de maneira tão penetrante a lógica mortífera da barbárie moderna como mecanismo impessoal.
            Esses pressentimentos parecem se perder nos anos do pós-guerra. Walter Benjamin é um dos raros pensadores marxistas a compreender que o progresso técnico e industrial pode ser portador de catástrofes nunca antes imaginadas. Daí seu pessimismo – não fatalista, mas ativo e revolucionário. Em um artigo de 1929 ele definia a política revolucionária como “a organização do pessimismo” – um pessimismo em todas as linhas: desconfiança quanto ao destino da liberdade, desconfiança quanto ao destino do povo europeu. E acrescenta ironicamente: “confiança ilimitada somente na IG Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe[7]. Ora, mesmo Benjamin, o mais pessimista de todos, não podia adivinhar a que ponto essas duas instituições iriam mostrar, alguns anos mais tarde, a capacidade maléfica e destrutiva da modernidade[8].
            Pode-se definir como propriamente moderna a barbárie que apresenta as seguintes características:
  • Utilização de meios técnicos modernos. Industrialização do homicídio. Extermínio em massa graças às tecnologias científicas de ponta;
  • Impessoalidade do massacre. Populações inteiras – homens, mulheres, crianças e idosos – são eliminados com o menor contato pessoal possível entre quem toma as decisões e as vítimas;
  • Gestão burocrática e administrativa eficaz, planificada, “racional” (em termos instrumentais) dos atos bárbaros;
  • Ideologia legitimadora de tipo moderno: “biológica”, “higiênica”, “científica” (e não religiosa ou tradicionalista);
  • Todos os crimes contra a humanidade, genocídios e massacres do século XX não são modernos no mesmo grau: o genocídio dos armênios em 1915, o genocídio levado a cabo por Pol Pot no Camboja, aquele dos tutsis em Ruanda, etc., associam, cada um com suas especificidades, traços modernos e traços arcaicos.

Os quatro massacres que encarnam de maneira mais acabada a modernidade da barbárie são o genocídio nazista contra judeus e ciganos, as bombas atômicas de Hiroshima e Nagazaki, o Gulag stalinista e a guerra norte-americana no Vietnã. Os dois primeiros são provavelmente os mais integralmente modernos: as câmaras de gás nazistas e a morte atômica norte-americana contêm, praticamente, todos os ingredientes da barbárie tecno-burocrática moderna.
Auschwitz representa a modernidade não somente pela sua estrutura de fábrica de mortes cientificamente organizada e que utiliza as técnicas mais eficazes. O genocídio dos judeus e dos ciganos é também, como observa Zygmunt Bauman, um produto típico da cultura racional burocrática, que elimina da gestão administrativa toda e qualquer interferência moral. Ele é, deste ponto de vista, um dos possíveis resultados do processo civilizador como racionalização e centralização da violência e como produção social da indiferença moral.

Como toda outra ação conduzida de maneira moderna – racional, planificada, cientificamente informada, gerida de forma eficaz e coordenada – o Holocausto deixou para trás todos seus pretensos equivalentes pré-modernos, revelando-os em comparação como primitivos, esbanjadores e ineficazes. (...) Ele se eleva muito acima dos episódios de genocídio do passado, da mesma forma que a fábrica industrial moderna está bem acima da oficina artesanal...”[9]

            A ideologia legitimadora do genocídio é ela também de tipo moderno, pseudocientífico, biológico, antropométrico, eugenista. A utilização obsessiva de fórmulas pseudo-medicinais é característica do discurso anti-semita dos dirigentes nazistas, o que pode ser notado nas conversações privadas deles. Numa carta a Himmler em 1942, Adolf Hitler insistia: “A batalha na qual nós estamos engajados hoje é do mesmo tipo que a batalha liderada, no século passado, por Pasteur e Koch. Quantas doenças não tiveram sua origem no vírus judeu... Nós não encontraremos nossa saúde sem eliminar os judeus”[10].
            Em seu notável ensaio sobre Auschwitz[11], Enzo Traverso destaca, com palavras sóbrias, precisas e lúcidas, o contexto do genocídio. Não se trata nem de uma simples “resistência irracional à modernização”, nem de um resíduo de barbárie antiga, mas de uma manifestação patológica da modernidade, do rosto escondido, infernal, da civilização ocidental, de uma barbárie industrial, tecnológica, “racional” (do ponto de vista instrumental). Tanto a motivação decisiva do genocídio – a biologia racial – quanto suas formas de realização – as câmaras de gás – eram perfeitamente modernas. Se a racionalidade instrumental não basta para explicar Auschwitz, ela é sua condição necessária e indispensável. Encontra-se nos meios de extermínio nazistas uma combinação de diferentes instituições típicas da modernidade: aí se fazem presentes a um só tempo a prisão descrita por Foucault, a fábrica capitalista da qual falava Marx, a “organização científica do trabalho” de Taylor, a administração racional/burocrática segundo Max Weber.
            Este último tinha intuído, como sublinha Marcuse, a transformação da razão ocidental em força destrutiva. Sua análise da burocracia como máquina “desumanizada”, impessoal, sem amor nem paixão, indiferente a tudo aquilo que não é a sua tarefa hierárquica, é essencial para compreender a lógica reificada dos campos da morte. Isso vale também para a fábrica capitalista que estava presente em Auschwitz, ao mesmo tempo que também se fazia presente nas oficinas de trabalho escravo da empresa IG Farben e nas câmaras de gás, locais de produção “em cadeia” da morte. Mas a “solução final” é irredutível a toda lógica econômica: a morte não é nem uma mercadoria, nem uma fonte de lucro.
            Traverso critica, de maneira muito convincente, as interpretações – inspiradas, em um grau ou outro, pela ideologia do progresso – do nazismo e do genocídio como produto da história do irracionalismo alemão (Georg Lukács), de uma “saída” da Alemanha para fora do berço ocidental (Jürgen Habermas) ou de um movimento de “descivilização” (Entzivilisierung) inspirado por uma ideolofia “pré-industrial” (Norbert Elias). Se o processo civilizador significa, antes de tudo, a monopolização da violência pelo Estado – como o mostram, depois de Hobbes, tanto Weber quanto Elias – é necessário reconhecer que a violência do Estado está na origem de todos os genocídios do século XX. Auschwitz não representa uma “regressão” em direção ao passado, em direção a uma idade bárbara primordial, mas é realmente um dos rostos possíveis da civilização industrial ocidental. Ele constitui, ao mesmo tempo, uma ruptura com a herança humanista e universalista dos iluministas e um exemplo terrível das potencialidades negativas e destrutivas de nossa civilização.
            Se o extermínio dos judeus pelo III Reich é comparável a outros atos bárbaros, nem por isso ele deixa de ser um evento singular.É necessário recusar as interpretações que eliminam as diferenças entre Auschwitz e os campos soviéticos, ou os massacres coloniais, os pogroms, etc.[12] O crime de guerra que tem mais afinidades com Auschwitz é Hiroshima, como compreenderam bem Günther Anders e Dwight MacDonald: nos dois casos delega-se a tarefa a uma máquina de morte formidavelmente moderna, tecnológica e “racional”. Mas as diferenças são fundamentais. Inicialmente, as autoridades norte-americanas não tiveram jamais como objetivo – como aquelas do III Reich – realizar o genocídio de toda uma população: no caso das cidades japonesas, o massacre não era, como nos campos nazistas,um fim em si mesmo, mas um simples “meio” para atingir objetivos políticos. A finalidade da bomba atômica não era o extermínio da população japonesa como um fim autônomo. Tratava-se, sobretudo, de acelerar o fim da guerra e demonstrar a supremacia militar norte-americana face à União Soviética. Em um relatório secreto de maio de 1945 ao presidente Truman, o Target Commitee – o “Comitê do Alvo”, composto pelos generais Grove, Norstadt e do matemático Von Neumann – observa friamente: “A morte e a destruição irão não somente intimidar os japoneses sobreviventes a fazer pressão pela capitulação, mas também (a bônus) assustar a União Soviética. Em síntese, a América poderia terminar mais rapidamente a guerra e, ao mesmo tempo, ajudar a moldar o mundo do pós-guerra”[13]. Para obter esses objetivos políticos, a ciência e a tecnologia mais avançadas foram utilizadas e centenas de milhares de civis inocentes, homens, mulheres e crianças, foram massacrados – sem falar da contaminação pela irradiação nuclear das gerações futuras.
            Uma outra diferença com Auschwitz é, sem dúvida, o número bem inferior de vítimas. Mas a comparação das duas formas de barbárie burocrático-militar é muito pertinente. Os próprios dirigentes americanos estavam conscientes do paralelo com os crimes nazistas: em uma conversa com Truman no dia 6 de junho de 1945, o Secretário de Estado Harry L. Stimson relatava seus sentimentos: “Eu disse a ele que estava inquieto com esse aspecto da guerra... porque eu não queria que os americanos ganhassem reputação de ultrapassar Hitler em atrocidade”[14].
            Em muitos aspectos, Hiroshima representa um nível superior de modernidade, tanto pela novidade científica e tecnológica representada pela arma atômica, quanto pelo caráter ainda mais distante, impessoal, puramente “técnico” do ato exterminador: pressionar um botão, abrir a escotilha que liberta a carga nuclear. No contexto próprio e asséptico da morte atômica entregue pela via aérea, deixou-se para trás certas formas manifestamente arcaicas do III Reich, como as explosões de crueldade, o sadismo e a fúria assassina dos oficiais da SS. Essa modernidade se encontra na cúpula norte-americana, que toma – após ter cuidadosa e racionalmente pesado os prós e os contras – a decisão de exterminar a população de Hiroshima e Nagasaki: um organograma burocrático complexo, composto por cientistas, generais, técnicos, funcionários e políticos tão cinzentos quanto Harry Truman, em contraste com os acessos de ódio irracional de Adolf Hitler e seus fanáticos.
            No decurso dos debates que precederam a decisão de lançar a bomba, certos oficiais, como o general Marshall, declaram suas reservas à medida em que eles defendiam o antigo código militar, a concepção tradicional da guerra, que não admitia o massacre intencional de civis. Eles foram vencidos por um ponto de vista novo, mais “moderno”, fascinado pela novidade científica e técnica da arma atômica, um ponto de vista que não tinha nada a ver com códigos militares arcaicos e que não se interessava senão pelo cálculo de lucros e perdas, isto é, em critérios de eficácia político-militar[15]. Seria necessário acrescentar que um certo número de cientistas que tinham participado, por convicção anti-fascista, nos trabalhos de preparação da arma atômica, protestaram contra a utilização de suas descobertas contra a população civil das cidades japonesas.
            Uma palavra sobre o Goulag stalinista: se há muito em comum com Auschwitz – sistema concentracionário, regime totalitário, milhões de vítimas – ele se distingue pelo fato de que o objetivo dos campos soviéticos não era o extermínio dos prisioneiros, mas sua brutal exploração como força de trabalho escrava. Em outras palavras: pode-se comparar Kolyma e Buchenwald, mas não o Goulag e Treblinka. Nenhuma contabilidade macabra – como aquela fabricada por Stéphane Courtois e outros anticomunistas profissionais – pode apagar essa diferença.
            O Goulag era uma forma de barbárie moderna na medida em que era burocraticamente administrado pelo Estado totalitário e colocado a serviço de projetos stalinistas faraônicos de “modernização” econômica da União Soviética. Mas ele se caracteriza também por traços mais “primitivos”: corrupção, ineficácia, arbitrariedade, “irracionalidade”. Ele se situa, por essa razão, em um degrau de modernidade inferior ao sistema concentracionário do III Reich.
            Enfim, a guerra americana no Vietnã, atroz pelo número de vítimas civia exterminadas pelos bombardeios, o napalm ou as execuções coletivas, constitui, em vários aspectos, uma intervenção extremamente moderna: fundada sobre uma planificação “racional” – com a utilização de computadores e de um exército de especialistas – ela mobiliza armamentos muito sofisticados, na ponta do progresso técnico dos anos 60 e 70: B-52, napalm, herbicidas, bombas de fragmentação, etc.[16]
            Essa guerra não foi um conflito colonial como os outros: basta lembrar que a quantidade de bombas e explosivos lançados sobre o Vietnã foi superior àquela utilizada por todos os beligerantes durante a Segunda Guerra Mundial! Como no caso de Hiroshima, o massacre não era um objetivo em si, mas um meio político; e se a cifra de mortos é bem superior àquela das duas cidades japonesas, não se encontra no Vietnã aquela perfeição da modernidade técnica e impessoal, aquela abstração científica da morte que caracteriza a “morte atômica”[17].
            A natureza contraditória do “progresso” e da “civilização” moderna se encontra no coração das reflexões da Escola de Frankfurt. Em A Dialética do Iluminismo (1944), Adorno e Horkheimer constatam a tendência da racionalidade instrumental de se transformar em loucura assassina: a “luminosidade gelada” da razão calculista “carrega a semente da barbárie”. Em nota redigida em 1945 para Mínima Moralia, Adorno utiliza a expressão “progresso regressivo” tentando dar conta da natureza paradoxal da civilização moderna[18].
            Essas expressões, entretanto, ainda são tributárias, apesar de tudo, da filosofia do progresso. Na verdade, Auschwitz e Hiroshima não são em nada uma “regressão à barbárie” – ou mesmo uma “regressão”: não há nada no passado que seja comparável à produção industrial, científica, anônima e racionalmente administrada da morte em nossa época. Basta comparar Auschwitz e Hiroshima com as práticas guerreiras das tribos bárbaras do século IV para se dar conta que eles não têm nada em comum: a diferença não é somente na escala, mas na natureza. É possível comparar as práticas mais “ferozes” dos “selvagens” – morte ritual do prisioneiro de guerra, canibalismo, redução de cabeças, etc. – com uma câmara de gás ou uma bomba atômica? São fenômenos inteiramente novos, que não seriam possíveis a não ser no século XX. As atrocidades de massa, tecnologicamente aperfeiçoadas e burocraticamente organizadas, pertencem unicamente à nossa civilização industrial avançada. Auschwitz e Hiroshima não são mais “regressões”: são crimes irremediavelmente e exclusivamente modernos.
            Existe, todavia, um domínio específico da “barbárie civilizada” em que se pode efetivamente falar de regressão: a tortura. Como destaca Eric Hobsbawm em seu admirável ensaio de 1994, Barbárie: um guia para o historiador:

A partir de 1782 a tortura foi formalmente eliminada do procedimento judiciário dos países civilizados. Em teoria, ela não era mais tolerada nos aparelhos coercitivos do Estado. O preconceito contra essa prática era tão forte que ela não pôde retornar após a derrota da Revolução Francesa, que a havia seguramente abolido. (...) Pode-se suspeitar que nos redutos da barbárie tradicional, que resistem ao progresso moral – por exemplo, as prisões militares ou outras instituições análogas – ela de fato não desapareceu.[19]

                Ora, no século XX, sob o fascismo e o stalinismo, nas guerras coloniais – Argélia, Irlanda, etc. – e nas ditaduras latino-americanas, a tortura é de novo empregada em grande escala. Mais recentemente, vimos a degradação de seres humanos sob tortura às ordens de um dos “pilares” da moderna civilização, os Estados Unidos: as deprimentes imagens da prisão de Abu Graib, no Iraque, e mesmo o arbitrário tratamento dado a prisioneiros na base norte-americana de Guantánamo.
            Os métodos são diferentes – a eletricidade substitui o fogo e os torniquetes – mas a tortura de prisioneiros políticos tornou-se, no curso de século XX e início do XXI, uma prática rotineira – mesmo se não-oficial – de regimes totalitários, ditatoriais e mesmo, em certos casos, “democráticos”. Nesse caso, o termo “regressão” é pertinente, na medida em que a tortura era praticada em inúmeras sociedades pré-modernas, e também na Europa, da Idade Média ao século XVIII. Um uso bárbaro que o processo civilizador parecia ter suprimido no curso de século XIX voltou no século XX, mas sob uma forma mais “moderna” – do ponto de vista das técnicas – mas não menos desumana.
            Levar em conta a barbárie moderna do século XX exige o abandono da ideologia do progresso linear. Isso não quer dizer que o progresso técnico e científico é intrinsecamente portador de malefício – nem tampouco o inverso. Simplesmente a barbárie é uma das manifestações possíveis da civilização industrial/capitalista moderna – ou se sua cópia “socialista” burocrática. Não se trata de reduzir a história do século XX a seus momentos bárbaros: essa história conheceu também a esperança, as sublevações dos oprimidos, as solidariedades internacionais, os combates revolucionários: México, 1914; Petrogrado, 1917; Budapeste, 1919; Barcelona, 1936; Paris, 1944; Budapeste, 1956; Havana, 1959; Paris, 1968; Lisboa, 1974; Manágua, 1979; Chiapas, 1994, foram alguns dos momentos fortes – mesmo se efêmeros – dessa dimensão emancipadora do século XX. Eles constituem pontos de apoio preciosos à luta de gerações futuras por uma sociedade humana e solidária.


Referências Bibliográficas:
[1] ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro,
[2] ELIAS, Norbert. La Dynamique de l'Occident. Paris, Calmann-Lévy, 1975, p.181. A referência ao combate abissínio soa estranha no momento em que a Etiópia combatia pela sua liberdade contra a invasão colonial do fascismo italiano, portador de uma pretensa missão "civilizadora".

[3] MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, Vol. I, pp. 557-58.
[4] MARX, Karl. Salário. Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p. 265.
[5] LUXEMBURGO, Rosa. A Crise da Social-Democracia. Lisboa, Editorial Cervantes, 1988, pp. 35-8.
[6] KAFKA, Franz. La Colonie Pénale. Paris, Nouveles Letres, 1971, pp. 113-181.
[7] BENJAMIN, Walter. “O Surrealismo. O ultimo instante da inteligência européia”. In: Mito e Violência. Lisboa, Editorial Inquérito, 1971, p. 312.
[8] Lembremos que o grande truste químico IG Farben não somente utilizou massivamente a mão-de-obra escrava em Auschwitz, mas também produziu o gás Ziklon B, que servia para o extermínio das vítimas do sistema de campos de concentração.
[9] BAUMAN, Zygmunt. Modernity and the Holocaust. Londres, Polity Press, 1989, p. 15.
[10] Citado por Zygmunt Bauman, Op. Cit. p. 71.
[11] TRAVERSO, Enzo. L’Histoire Dechirée. Essai sur Auschwitz et les intellectuels. Paris, Cerf, 1997.
[12] Sobre este assunto, remeto às excelentes considerações de Enzo Traverso no artigo “La Singularité de Auschwitz. Hypothèses, Problèmes et Dérivations de la Rechèrche Historique”. In: Pour une Critique de la Barbarie Moderne. Ecrits sur l´histoire des Juifs et de l´antisémitisme. Lausane, Éditions Page Deux, 1997.
[13] BERNSTEIN, Barton J. “The Atomic Bombings Reconsidered”. In: Foreign Affairs, fevereiro de 1995. Citado a partir de arquivos recentemente abertos.
[14] Ibid, p. 146.
[15] Sobre as reservas de Marshall, cf. Barton J. Berstein, Op. Cit., p. 143.
[16] De fato, é inteiramente racional, se a “razão” significa racionalidade instrumental, aplicar a força militar norte-americana, os B-52, o napalm e todo o resto, no Vietnã “sob dominação comunista” (claramente um “objeto indesejável”), como o “operador” para o transformar em objeto desejável”. WEISENBAUM, Joseph. “Computer, Power and Human Reason”. In: From Judgement to Calculation. S. Francisco, W.H. Freeman, 1976, p. 252.
[17] Outras guerras coloniais tiveram lugar no século XX – na própria Indochina, na Argélia, na África colonial portuguesa, etc. – mas nenhuma delas atingiu o grau de modernidade como a do Vietnã. Em comparação, aquelas parecem arcaicas, primitivas.
[18] ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. La Dialectique de la Raison. Paris, Gallimard, 1974, p. 48 e ADORNO, Theodor W. Minima Moralia. Paris, Payot, 1983, p. 134.
[19] HOBSBAWM, Eric J. Barbárie: um guia para o historiador. Lisboa, Publicações Europa-América, 1997, p. 259-263.

Victor Tempone
Mestre em História Política (UERJ), Especialista em Relações Internacionais (UERJ), Professor e Pesquisador na UERJ e Professor na FAFIMA e e na rede do município de Macaé.
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Macaé / Universidade Estadual do Rio de Janeiro